Não há como negar que todo mundo de uma forma ou de outra torce, vibra, luta por ele e defende o lugar de onde veio. Porque nesse lugar estão nossas origens, nosso passado, nossa língua, os hábitos e a arte que ajudaram a formar nosso caráter, nossa forma de ser e ver o mundo. Lá estão as primeiras pessoas que a gente amou, os primeiros cenários da nossa vida, os primeiros aprendizados, as primeiras paixões. Então é disso tudo que você se ufana, porque é isso que você preza acima de tudo. Não se trata de louvar bandeiras, cores ou hinos, mas sim de cultivar e preservar heranças queridas.
Contra tudo e contra quase todos, aconteceu a Olimpíada do Rio de Janeiro, a primeira na América do Sul. Superamos o viralatismo de alguns estranhos compatriotas que apostaram até o último segundo contra a nossa própria capacidade de organização, e que vaticinaram todos os horrores possíveis para os jogos, desde atentados terroristas, assaltos em massa e epidemias até a suspensão sumária dos jogos.
Superamos o massacre da imprensa internacional, que bombardeou o noticiário com o que há de pior no Rio de Janeiro e no Brasil, causando uma histeria em massa com relação às condições de segurança e saúde para a realização dos jogos na cidade. Consequência direta desse massacre foram as atitudes bizarras de dois atletas americanos, Hope Solo e Ryan Lochte. A goleira da equipe americana de futebol acabou ridicularizada pela torcida brasileira por causa do seu medo exagerado de contrair o vírus zika no Rio, quando na verdade hoje é muito mais provável que ela fique doente em Miami que no Vidigal. O nadador Lochte aproveitou-se da persistente imagem de cidade-crime divulgada para armar uma farsa vergonhosa como justificativa para uma noitada de bebedeira e vandalismo. Ambos acabaram desmoralizados, manchando um pouco a brilhante performance da delegação americana nos jogos.
Passamos por cima do pensamento curto de quem vê a Olimpíada apenas como um desperdício de recursos que poderiam ser alocados para outras coisas. É o tipo de pensamento incapaz de perceber que um evento assim traz com ele uma carga simbólica motivadora que amplia a nossa capacidade de realização, dando uma injeção de autoconfiança no povo, na cidade e no país, estimulando com isso a chegada de transformações positivas. Não enxergam também os benefícios mais imediatos que uma Olimpíada rende para a cidade. No caso do Rio, foram inúmeras as obras de melhoria no sistema de transporte de massa, várias as reformas em grandes áreas urbanas, novos museus e casas de cultura, além, é claro, do legado da própria infraestrutura de esportes construída especialmente para os jogos. Os curtos de visão não percebem também o valor incalculável em publicidade turística que há nas imagens da cidade divulgadas maciçamente no mundo inteiro por mais de duas semanas. Por fim, não conseguem ver que, se as 500 mil pessoas que foram ao Rio para os jogos gastaram lá mil dólares cada uma, isto significa que meio bilhão de dólares foram injetados na economia da cidade em menos de um mês. Não foi à toa que a rede de TV americana NBC pagou 1,2 bilhões de dólares para transmitir com exclusividade os jogos para os Estados Unidos. Valeu a pena, a Olimpíada do Rio de Janeiro foi mesmo um sucesso.
Desde o começo a Rio 2016 mostrou que veio para ser a Olimpíada da diversidade. O espetáculo de abertura, modesto em orçamento mas criativo e original em sua temática inclusiva, escapou do lugar-comum de somente louvar as maravilhas do país anfitrião e aproveitou a própria diversidade do Brasil para ressaltar o que o espírito da Olimpíada tem de melhor, a sua capacidade de promover uma confraternização global, onde os diversos povos do planeta competem pacificamente entre si em vez de matarem-se uns aos outros. A presença de uma delegação composta por atletas refugiados de diferentes nações assoladas pela guerra foi o maior símbolo da filosofia inclusiva, acolhedora e da proposta de paz olímpica. Apátridas, expulsos pela guerra e pela miséria, eles reencontraram a sua dignidade no Rio. De quebra, a abertura ainda serviu para mostrarmos ao mundo a nossa versão da história da aviação, com o belo voo virtual do 14 Bis de Santos Dumont sobre a cidade. Durante os jogos, imagens como o abraço e a ‘selfie’ de duas ginastas separadas pela intolerância, uma da Coreia do Sul e a outra da Coreia da Norte, serviram para lembrar que o esporte é muito mais forte para unir os povos do que as diferenças que os políticos cultivam para separá-los.
A Olimpíada do Rio escapou da rapina dos políticos. Vaiado na abertura, ao presidente interino só restou recolher-se à sua pequenez e sumir de cena. Foi um alívio ver as tribunas livres do sorriso hipócrita dos aproveitadores. Nenhum político, nem mesmo o prefeito do Rio, saiu prestigiado da Olimpíada, ou ousou creditar os méritos da sua realização para si. No vácuo do país sem liderança, o povo tomou conta da festa e chamou para si toda a responsabilidade como anfitrião. Os méritos são todos desse povo da cidade, dos voluntários, dos profissionais e atletas que fizeram os jogos acontecerem com tanto sucesso. Isso ficou claro para os jornalistas estrangeiros que foram ao Rio. A princípio desconfiados de tudo e ignorantes da maioria do costumes e da cultura dos brasileiros, aos poucos eles foram se inteirando de nós e por fim renderam-se aos encantos da cidade. No final da cobertura já estavam com uma atitude diferente, positivamente surpresos com o que encontraram no Brasil
Quanto ao esporte, como de hábito vários recordes mundiais foram batidos e histórias emocionantes foram contadas. Como a da judoca Rafaela Silva, que ganhou a primeira medalha de ouro para o Brasil. Ela contrariou todas as probabilidades do seu futuro, atropelou todas as dificuldades de uma origem humilde na favela, recuperou-se de uma derrota na Olimpíada anterior e arrancou do peito um ouro feito de pura determinação. Lendas olímpicas foram consolidadas, como Usain Bolt e Michael Phelps – os homens mais rápidos da história, respectivamente na terra e na água -, e outras nasceram, como a fantástica ginasta americana Simone Biles. Com um total de dezenove medalhas, sete das quais douradas, o Brasil bateu seu recorde em Olimpíadas, e finalmente veio a mais desejada e aguardada de todas – a inédita medalha de ouro no futebol, conquistada em pleno Maracanã, anotando mais um momento histórico no currículo do maior templo do futebol mundial.
Como se não bastasse, tudo isso aconteceu em um dos cenários urbanos naturais mais espetaculares do mundo. O ciclismo de rua foi disputado por mais de cem quilômetros em paisagens de tirar o fôlego. O nado oceânico foi em plena praia de Copacabana, uma das mais famosas do mundo, entre os dois fortes de suas extremidades. As provas de remo na Lagoa Rodrigo de Freitas e de vela na Baía de Guanabara aconteceram numa área muito mais limpa do que a que nos queriam empurrar goela abaixo os urubus do fracasso. Para fechar, uma maratona à beira da Baía de Guanabara, passando pelo revigorado Centro da Cidade e a Orla Olímpica, cheios de novos e espetaculares museus. Simplesmente deslumbrante.
É preciso, contudo, uma dose de realismo. O Rio de Janeiro e o Brasil sofrem com problemas crônicos e seculares, como a falta de segurança e educação, a corrupção oficial e a desorganização em geral. Muitas das metas propostas desde que a cidade foi nomeada como sede da Olimpíada em 2009 não foram cumpridas. Houve pequenos problemas, como os defeitos nos alojamentos da Vila Olímpica e episódios isolados de violência, como o apedrejamento de um ônibus com jornalistas, felizmente nenhum grave o suficiente para comprometer a boa impressão deixada pela cidade no mundo.
Mas a Olimpíada não é a razão desses problemas. Ao contrário, ela serviu como exemplo para provarmos a nós mesmos que somos capazes de superar todos eles quando queremos. Ela mostrou que esses problemas, apesar de crônicos, têm solução. Precisamos aproveitar o momento de otimismo para canalizar um esforço coletivo no sentido de trazer uma espécie de clima olímpico permanente para o Rio de Janeiro e para o Brasil. É a nossa grande chance.
O Rio provou que isso é possível, e a Cidade Maravilhosa fez uma Olimpíada maravilhosa. Parabéns, cariocas.