Quem dirige pelas ruas da cidade antes das 7 horas consegue ver algo peculiar: um exército de ‘vans’. Centenas de carros como esses circulam pelas ruas e estradas e dentro deles um outro exército está acomodado. É o exército de homens que guerreiam, diariamente, pela sobrevivência: os senhores ‘brickeiros’.
Eles são caricaturados na comunidade brasileira como grosseiros, sem instrução, freqüentadores de ‘botecos’ e de noites sertanejas, péssimos tippers, mas detentores de um dos melhores salários da comunidade imigrante. E essa última é a única característica que se encaixa em todos, sem exceção.
Eles ganham de 80 até 150 dólares por dia mas para fazer valer esses salários enfrentam uma rotina nada simpática. Despertam entre as 5h30 e 6h, tomam café reforçado, põem qualquer roupa, sapatos que protejam bem, empacotam as marmitas – a água é coletiva: um garrafão com 20 litros ou mais é providenciado nas zonas de construção- e seguem até o ponto de encontro.
Os ‘pontos’ são estratégicos; é geralmente um posto de gasolina onde todos se encontram, após as 6h30, e onde as vans os recolhem. O destino nunca é conhecido. “A gente só fica sabendo para onde vai na hora de sair”, explica o paranaense Darcy Luís Brayer, 42 anos, salário diário de 120 dólares, que deixou “uma roça” em Rondônia para trabalhar sob o sol nos Estados Unidos. Ele começou como ajudante, ganhando 70 dólares, e em seis meses foi promovido. Por promoção, nessa profissão, entenda-se o privilégio de não carregar areia e pedra. “Para o ajudante o trabalho é mais pesado”, admite ele.
Mas ele tem razão em se queixar. Só observar o trabalho deles já é cansativo. São de 30 a 60 minutos numa van desconfortável, e quase sempre bem suja, até chegar ao local – o que a reportagem presenciou foi um condomínio em Júpiter. Lá, sem demora, põem a mão na massa – ou no carrinho e na pá. Meia hora depois as roupas já não têm um centímetro de área seca; são todas suor. E isso porque o sol nem se levantou. Às 10h o sol já está quente, a disposição matutina já se foi e o automatismo comanda os homens do brick: puxa daqui, joga dali, compacta de lá, e o estômago, que já foi enganado com uma fruta ou biscoito e vários copos d’água – pelo menos um copo por hora- já espera a hora do ‘rango’, que hoje é arroz, feijão, carne, salada e algumas frutas. “O chato é que a gente só tem 20 minutos para comer”, lamenta Iran Habes, 35, maranhense, que passou por Portugal e Newark, de onde, fugindo do frio, abriu mão de um salário de 20 dólares por hora. Mas não se arrepende. “A gente trabalha duro mas ganha bem. A solidão é que é o mais difícil desse trabalho”, diz, querendo se referir à falta de uma família o esperando no fim do dia e de opções de diversão no final de semana.
Depois do almoço não tem descanso. É voltar para a dureza e esperar, com ansiedade, que o relógio marque 5h – a hora de voltar para casa.
Nó na língua
E todo ‘brickeiro’ se queixa da vida porque quer mesmo é ser ‘contractor’. Contractor é o empreiteiro, que pega o contrato com os condomínios e contrata terceiros para executar o serviço. Um bom contrato pode render de 10 a 15 mil dólares por mês ao contractor. “A gente só não consegue pegar contrato porque não fala inglês”, esclarece Darcy.
Não falam e nem têm disposição para aprender depois de 8 horas diárias sob o sol. O mais próximo que eles chegam da língua do Tio Sam é através dos vícios lingüísticos do trabalho a exemplo de ‘peivar’ (colocar os pavers – ou pedras), ‘borear’ (fazer o border), e brickeiro (tradução improvisada para pedreiro, que é na verdade bricklayer).
“De inglês ele só sabe Ok”, se diverte a turma apontado para Romário Januário, pernambucano de 46 anos (80 dólares por dia), que parece ser o bobo da corte na turma. Todos se divertem às suas custas embora se comportem diante da reportagem e evitem palavras obscenas ou brincadeiras grosseiras, o que parece ser usual no dia-a-dia de trabalho, mas que eles negam. “A gente não tem tempo para brincar. Conta uma piada aqui e ali mas em geral é só trabalho sério”, afirmam diante da pergunta se acontece conversas sobre mulheres, sexo e bebedeira. Mas fica nas entrelinhas que na ausência de estranhos a realidade é mais divertida, ou machista.
‘Peivando’ e ‘boreando’
Mesmo entre uma brincadeira e outra – quando não tem chefe por perto- o dia de trabalho no brick passa lento. A rotina é carregar areia e pedra, tombar tijolo (colocar em máquina rotativa para dar efeito de envelhecido), cortar pedra, puxar areia (espalhá-la no chão), alinhar (igualar com o nível), compactar (firmar a areia, com máquina), ‘peivar’ e ‘borear’. As últimas etapas, mais leves, ficam para o ‘profissional’, ou brickeiro que deixou de ser ajudante. Ele também confere planta baixa e coordena o trabalho dos outros. E isso é tudo o que um ‘brickeiro’ tem que fazer.
“É diferente do Brasil, onde um pedreiro faz da massa ao telhado”, diz Mivaldo Mariano de Oliveira, 33 anos (80 dólares por dia), que antes de vir para a Flórida foi pedreiro em Portugal, como o amigo Iran, e também trabalhou em construção em Newark, onde ganhava 13 dólares por hora e trabalhava menos pesado. “O brick judia muito da gente. A construção – levantar paredes e fazer piso- é mais leve”, se queixa o ex-taxista que só pensa e voltar ao Brasil para mostrar a praia à esposa, que nunca foi a uma.
Ele é um dos que mais se queixa da vida dura e da falta da família. Assim como Romário, o que mais se diverte com o trabalho. Saiu de uma ‘roça’ no Brasil e sente a falta da família. “Eu quero ir embora em dezembro”, fala nostálgico e lembrando da família.
Nem todo ‘ brickeiro’ faz points nas noites de forró
Todos falam em ir embora. “Isso aqui não é vida. Eu quero ir embora logo”, se queixa Mivaldo, que no final de semana se diverte falando várias vezes com o filho e a esposa.
Essa turma, inclusive, desmente a máxima de que todo ‘brickeiro’ faz ponto nas noites de forró e música sertaneja de Broward, nos finais de semana.
“A gente não sai para lugar nenhum”,, diz Iran. ” Nossa diversão é ver novela mexicana”, emenda Romário. “A gente se diverte também quando o Romário derruba alguma coisa”, provoca Iran. “O brickeiro que não tem compromisso no Brasil é que sai para gastar no final de semana”, completa Darcy. A única exceção da turma é o ‘brickeiro’ Vantuil Procópio, 41 anos (130 dólares por dia). Ele costuma frequentar as noites brasileiras da região e se justifica: “essa é nossa única diversão aqui”. Ele já veio várias vezes ao país e agora pretende ir “de vez” para o Brasil. Para isso já providenciou seu “pé-de-meia” em Ipatinga, sua terra, para ter uma vida confortável. Questionado se não valeria a pena exercer outra profissão, ele é enfático: “já fiz clean mas não faço mais. Paga muito pouco”.
Sobre o esforço às vezes sobre-humano que têm que fazer, eles falam com conformismo. “É duro mas a gente se acostuma”, diz Darcy. “O pior mesmo é o calor”, completa. Romário é mais contundente: “o pior do trabalho é não ter trabalho”, fala sorrindo, dizendo ainda que fica estressado quando tem que ficar em casa. Quando a pergunta é sobre qual o melhor momento dessa profissão, eles nem pestanejam: “é o dia do S. Envelope”. Ou seja, o dia em que eles recebem o dinheiro, geralmente aos sábados.
E é assim, entre lágrimas, risos, brincadeiras, momentos sérios, piadas, trotes e dores no corpo que eles vão “livrando o ganha pão”, com muito mais honra do que fariam no Brasil. “A diferença de ser pedreiro no Brasil e aqui, é que lá a gente não ganha o suficiente nem para comer”, compara Vantuil. Eles também não perdem tempo pensando na forma caricatural com que são vistos, querem apenas seguir vivendo. “Somos brickeiros mas somos felizes. E estamos sempre aí: gemendo ou cantando, sorrindo ou chorando”, afirmam eles, ávidos para verem suas fotos estampadas no jornal e enviarem para o Brasil para mostrar o dia em que eles foram notados por alguém. O dia em que eles foram alvo não de bricadeiras jocosas ou reclamações, mas de atenção pública. E lá se foram eles de volta para suas casas, na mesma van desconfortável, para chegar em casa, ligar a Tv, cozinhar a comida do dia seguinte, dormir, levantar e recomeçar tudo outra vez.