Mas é carnaval
Conto de Tomás Creus (segundo colocado)
O grande problema era que ele não se sentia nem brasileiro nem americano. Vivia num limbo entre as duas culturas, sem realmente pertencer a nenhuma delas. Crescera no Brasil odiando samba, carnaval, futebol e capoeira, e talvez esse mesmo tivesse sido o motivo de ter ido viver tão longe. Queria escapar dessa sina de ter nascido no país do Carnaval. País da alegria? Podia até ser. Mas ele não era alegre — e não era expansivo, não era esportivo e francamente sempre preferira a arte, a literatura e o cinema americano e europeu às emanações locais.
Era um estrangeiro nato.
Mas agora, morando já há mais de cinco anos em Los Angeles, José sentia muitas vezes uma estranha saudade, sonhava com um glorioso retorno às terras tupi, assistia os jogos do seu time brasileiro pela Internet e de vez em quando até surpreendia-se assobiando velhas canções de MPB.
O fato é que não se adaptara bem. Não fizera muitos amigos. Percebera logo que os americanos tinham um senso de humor diferente, eram simpáticos mas mantendo sempre certa distância, eram formais no trabalho e superficiais na amizade, ou seja, eram tudo mais ou menos o oposto exato de sua personalidade e do modo em que ele se acostumara no Brasil.
Além disso, a verdade é que, com exceção do seu último emprego num escritório, até então trabalhara quase sempre em restaurantes ou bares, nos quais a maioria dos empregados eram mexicanos. Ele, que tinha ido para os EUA com a idéia de melhorar o seu inglês, acabara aprendendo espanhol. Mas tampouco fizera muitas amizades com os colegas de trabalho. Se não se identificava com a cultura brasileira, a cultura mexicana o seduzia menos ainda: não gostava nem mesmo de tequila.
Muitas vezes pensou em voltar ao Brasil, reencontrar a família e retomar a sua vida de sempre na sua cidade natal. Uma vez chegou até a comprar a passagem, só de ida, que devolveu depois. Sempre havia algo que o detinha. Às vezes, pequenos acontecimentos que ele interpretava como sinais. Uma dessas vezes, perdido em uma rua imunda no centro de Los Angeles, entrou em uma igreja popular. O pastor gritava, declamando o Evangelho: “Volta o cão ao seu vômito, e a porca lavada volta a revolver-se no lamaçal!” Foi o suficiente para fazê-lo mudar de ideia, mais uma vez. Voltar? Não, não podia voltar. Havia estado demasiado tempo fora, e voltar agora seria reconhecer a sua derrota. Era demasiado orgulhoso para isso. Não podia, não iria voltar.
No fim das contas, terminou integrando-se à sua situação não-de-todo-integrada. Consolava-se pensando que, entre todos os destinos, não era o pior. Melhor ser um estrangeiro lá fora do que um estrangeiro em seu próprio país. Pode-se dizer que assumiu sua condição de perene forasteiro: seu círculo de amigos se resumiu a um pequeno grupo de estudantes estrangeiros do curso de extensão na universidade local, quase tão confusos culturalmente quanto ele. Seu melhor amigo era um argentino de origem coreana que tinha crescido no Peru. Confusão de identidade era com ele mesmo.
Paola foi um caso diferente. Encontrou-a numa festa elegante, um coquetel de lançamento de uma revista. Ele tinha ido apenas pelos drinques gratuitos, mas aquela moça bonita, tão elegante e tão diferente de quase todas as outras pessoas que ali estavam, chamou a sua atenção, ele não podia negar. Decidiu que nem ia tentar falar com ela: muita areia pro meu caminhãozinho, pensou. O curioso é que talvez tenha sido essa mesma falta de interesse, que ela talvez interpretou como desdém, o que a atraiu. Não havia pessoa naquela festa que não olhasse ou tentasse falar com ela; alguns mais afoitos ou mais embriagados até tentaram passar a mão. Só ele, no seu canto tomando um martini, parecia ignorá-la completamente. No fim, foi ela, curiosa, quem se aproximou e perguntou se ele era artista. Ele, surpreso, respondeu que não. Artista, veja só. Deviam ser os cabelos despenteados que lhe davam esse ar alternativo.
Ela disse que era italiana e, percebendo que também ele tinha um sotaque estrangeiro, perguntou de onde ele era. Ele hesitou. Devia dizer brasileiro? Não. Mentiu: polonês. No fundo, não deixava de ser parcialmente verdade, tinha uma bisavó polonesa. Outra, espanhola. Na verdade, ele era pelo menos 95% europeu; não fosse o sotaque, e o fato de não saber patavinas do idioma, bem que poderia passar por um polonês de verdade. Quando ela perguntou seu nome, ele disse Jozef.
Combinaram de se encontrar um outro dia, mas ela não veio. Depois disso, José passou a frequentar todos os coquetéis e eventos sociais da cidade, mas nunca mais a viu. O telefone que ela lhe dera jamais atendia: ou estava sempre desligado, ou era falso. Passaram-se meses. Quando finalmente chegou à conclusão que jamais a veria novamente, nesse mesmo dia a encontrou, mais uma vez por acaso, em um café. E, mais uma vez, foi ela quem se aproximou.
— Long time no see, disse ela. Seu inglês era quase perfeito, ou, ao menos, com um sotaque menos forte do que o dele. Ela pediu desculpas pelo desaparecimento, disse que estivera muito ocupada, que perdera seu telefone, que isto que aquilo. Ele naturalmente não acreditou em uma palavra, mas não importava. Era já milagre suficiente ela ter reaparecido em sua vida. Falaram sobre os respectivos trabalhos, planos, gostos musicais. Descobriram que tinham mais em comum do que pensavam. Nem ela era tão inacessível quanto parecera na festa (era uma simples cabeleireira) e nem ele estava tão longe de ser artista quanto dera a entender (chegara a cursar a universidade de comunicação e fizera alguns filmes).
Saíram muitas vezes depois desse encontro fortuito, e aos poucos ele foi descobrindo que passar tempo ao seu lado era agradável. É verdade que sentia-se sempre um pouco como um falsário, um mentiroso. Todas as noites pesquisava na Internet sobre a Polônia, inventando uma vida pregressa, e estudava algumas expressões em polonês, caso ela perguntasse alguma vez. Escolheu até mesmo a cidade onde teria nascido: Buk. Não por qualquer motivo sentimental ou histórico, mas apenas porque era uma das poucas que tinha nome curto e fácil de pronunciar.
E, apesar de todo o fingimento, tinha uma sensação curiosa quando estava com ela: nunca tinham-se visto antes, mas para José era como estar com alguém familiar, alguém que ele conhecia há tempos, desde a infância. Logo ele, que não se sentia em casa nem no Brasil nem nos EUA, e talvez em lugar nenhum do planeta, perto dela sentia-se em casa.
Era isso: estava apaixonado. Ou, ao menos, era o modo em que ele tentava se explicar esses sentimentos confusos que começavam a nascer.
Uma noite, depois de irem ao cinema, ele levou-a pela primeira vez para o seu apartamento. Um apartamento simples, pequeno, que ele tentara tornar o mais acolhedor possível. Não houve preâmbulos: tiraram a roupa e fizeram amor no sofá mesmo, como se apenas seguissem instintos primordiais.
Em um momento ela gritou: “Isso! Assim!” — em perfeito português. No calor da hora, ele nem percebeu. Mas, consumados ambos os orgasmos, o grito voltou-lhe à mente, perturbando-o, preocupando-o. Será que ele teria mesmo ouvido aquilo? Afina, poderia tratar-se de uma expressão similar em italiano. Mas a idéia não o convencia. Seus conhecimentos de italiano eram rudimentares, mas seria coincidência demais que soasse de modo tão similar a palavras tão brasileiras. Olhou-a nos olhos. Ela tinha cara de italiana, mas isso não provava nada, pois existiam muitos brasileiros de origem italiana.
— Você é brasileira? disparou.
Ela olhou-o sem jeito por um longo tempo antes de responder, como se calculasse cuidadosamente o que iria responder, se a verdade ou mais alguma outra mentira.
— Sou. disse finalmente. — Gaúcha de Bento Gonçalves.
— E a Itália?
— Morei lá por cinco anos, antes de vir pra cá. E você, morou na Polônia?
— Não, mas minha bisavó era polonesa. Sou do interior de Santa Catarina mesmo.
— Por que não me disse antes? disseram os dois quase ao mesmo tempo, caindo na gargalhada logo depois. Pensando bem, era realmente engraçado. Era até curioso que nenhum dos dois tivesse se dado conta antes. Mas a verdade é que ela não tinha sotaque brasileiro, talvez por ter morado tanto tempo na Itália, e o sotaque dele, forte, do interior de Santa Catarina, que ele disfarçava apenas um pouco, pode ser que aos ouvidos dela soasse mesmo como polonês.
Beijaram-se de novo, e foi de certa forma um alívio para ambos não terem mais que fingir. Passaram toda a noite em claro, conversando sobre o Brasil. Falaram sobre as coisas de que sentiam falta ” pão de queijo, churrasco com os amigos, novela das oito, chope no boteco, — e das coisas que não sentiam falta ” crime, política, trânsito, flanelinhas. Imaginaram uma vida nova que teriam caso voltassem ao Brasil. Falaram sobre o passado e o futuro, e assistiram ao sol raiar pela janela do seu prédio.
Quando ela estava indo embora, ele lhe contou sobre a festa de Carnaval:
— É no próximo fim de semana, em um bar aqui perto.
— Carnaval?
Ele explicou que jamais iria sozinho, que aliás nem gostava de Carnaval e que nunca ia no Brasil, mas que com ela seria diferente, que poderia ser engraçado, mas que também poderiam fazer outra coisa. Ela disse que não, que tinha achado a idéia divertida. Brincou que iria procurar uma fantasia de baiana.
— Vamos. Vamos sim. Te ligo.
Despediu-se com um beijo e um aceno, mas havia algo estranho no seu olhar, algo que só muito depois ele entendeu, quando já havia chegado o fim de semana e ele, sentado no bar bebendo a terceira capirinha, esperava ansiosamente por ela.
Tinham combinado de se encontrar às dez, mas já era quase meia-noite e ela não vinha, não respondia ao telefone nem às mensagens de texto. Foi então que ele lembrou daquele seu olhar na despedida, um olhar que durara uma fração de segundo mais do que deveria. E aquele “te ligo”, bem brasileiro, que no idioma pátrio só podia significar uma coisa: não vou te ligar. Nunca mais.
Ela não viria, sabia agora. Pois justamente aquilo que tinham em comum era o que os separava. Ambos eram brasileiros querendo fugir do Brasil, querendo criar uma identidade diferente para si mesmos, e no entanto sempre retornando. José lembrou das palavras do pastor:
“Volta o cão ao seu vômito, e a porca lavada volta ao seu lamaçal!” Que pena, pensou, estava gostando dela, e talvez fosse a sua última chance de ter uma vida normal. Pensou, desconsolado, que o erro foi tê-la convidado para a festa de Carnaval. É claro que o convite pretendera ser irônico, até meio debochado, mas talvez ela tivesse interpretado aquilo como uma solene declaração de brasilidade. Quem sabe?
Bebeu o último trago, amargo, da caipirinha. Agora estava ali, mais uma vez, sem poder voltar e sem poder ficar, sem ser nem brasileiro nem americano, para sempre perdido num limbo entre uma e outra cultura.
“Vamos”? Ele ergueu o olhar com esperança para a voz feminina que se dirigia a ele. Não, não era Paola. Era a mulata dançarina do clube que o convidava para juntar-se ao trenzinho da alegria que desfilava pelo salão. Decidido, colocou as mãos na cintura da mulata, que rebolava como um búfalo selvagem. E segurando firme nas ancas da cabrocha, também ele seguiu o cordão, rebolando e cantando alto, com todas as suas forças:
Mamãe eu quero
Ma-ma-ma-ma-mãe eu quero
Mamãe eu quero mamar
Dá mamadeira
Dá mamadeira
Dá mamadeira pro nenê não chorar!
Como havia decidido que cinema era sua paixão, ele decidiu tentar o mercado americano e há quatro anos mora em Los Angeles (CA) onde trabalha como professor na University of Califórnia – Los Angeles (UCLA). Tomás leciona no departamento de Português e Espanhol nas disciplinas de Cinema e Literatura Brasileira.
Quanto a sua participação no IV Prêmio AcheiUSA de Literatura ele lembra que uma amiga falou sobre o concurso. A inspiração para descrever a confusão de sentimentos e o caráter do personagem, segundo ele, veio do que amigos e ele mesmo passaram quando se mudaram para os Estados Unidos. “Era um conflito entre os dois países dentro da gente. Uma coisa cultural”, comenta. Tomás garante que a história é pura ficção e ninguém que ele conhece passou pela aventura amorosa que seu personagem se enveredou na maravilhosa Los Angeles.
Na próxima edição, o Jornal AcheiUSA vai publicar o conto colocado em terceiro lugare (“Nem Todos os Sorrisos Dizem Sim”, de Lúcia Santos).