Foram oitenta e sete anos vividos com admirável dignidade e zelosa responsabilidade. Ao final deles, você partiu tranquila, na certeza do dever cumprido e seus objetivos alcançados. Não deixou inimigos, pendências ou dívidas, só amigos e saudades. Parabéns!
Elvira brincava que um vidente certa vez lhe disse que em outra vida ela teria sido Salomão, o mais sábio dos homens. Tremendo exagero, é claro, mas ela possuía mesmo uma atávica sabedoria intuitiva, herdada talvez da mãe Pilar, de quem ouviu desde pequena os provérbios espanhóis que repetia para nós, os filhos, nas situações mais adequadas. Agregou a essa sabedoria intuitiva a erudição do pai, Angelo Raymundo, que lhe apresentou à literatura, à música e às artes. A mistura, entretanto, nunca foi pretensiosa, afetada ou presunçosa. Ao contrário, conviveu até com paixões simplórias, como as canções de Roberto Carlos que às vezes ela cantarolava pela casa.
Ao mesmo tempo que criava os três filhos, para os quais nunca faltou nada para a melhor educação possível, conquistou independência pessoal numa época em que ainda não se falava em empoderamento feminino ou equiparação dos sexos. Sem tomar conhecimento dessas limitações sociais, atreveu-se a chefiar uma equipe de dez homens em um departamento administrativo da polícia civil do Rio de Janeiro, antes que o machismo da corporação a transferisse para um cargo mais inofensivo e burocrático.
Com a vida profissional resolvida, depois de aposentada buscou na filosofia oriental respostas espirituais e formou-se professora de yoga, dando aulas em seguida para alunos da terceira idade. A prática de yoga, aliada a uma dieta comedida, livre de álcool e fumo, lhe garantiu uma relativa boa saúde até o final da vida.
Sua religiosidade se resumia em dizer vagamente que “Deus é tudo, no sentido do conjunto de todas as coisas”, mas não lhe atribuía um personagem ou qualquer papel de influência no mundo. Era cristã em filosofia, e mais de uma vez chamou Jesus de “mestre”, ao lado dos gurus hindus que admirava. Dizia não acreditar na permanência da vida depois da morte. “Onde você estava antes de nascer?”, perguntava. “Pois é justamente onde você vai estar quando morrer”, ela mesma respondia, com um sorriso.
Procurou criar os filhos sem preferências, mas como o mais novo dos três talvez eu tenha recebido injustamente alguma prerrogativa sobre minhas irmãs mais velhas. Era a maior fã das minhas tentativas literárias, estimulava os meus projetos, teve grande paciência com minhas indecisões e foi grande incentivadora dos meus planos. Embora a maior influência na minha formação cultural tenha vindo do meu pai, Elvira às vezes me surpreendia com sugestões literárias, me mostrando as obras de gente como Mário Vargas Llosa, Marguerite Yourcenar e Doris Lessing. Tínhamos longas e divertidas conversas sobre todos os assuntos, das quais vou sentir muita falta.
Ultimamente, repetia que nunca imaginou viver tanto tempo assim. A constituição aparentemente frágil na verdade escondia uma força extraordinária, que superou todas as limitações e dificuldades que encontrou pelo caminho. E assim acabou tendo uma bela vida, longa e próspera.
Morreu em casa, na sua cama, sem dramas ou sofrimento, com elegância.
Suas cinzas serão colocadas ao lado dos restos mortais da mãe, mas a imagem bem-humorada e divertida de Elvira ficará ternamente guardada na memória de quem a conheceu.
Parabéns pela sua vida, mãe, e obrigado pela minha.