O anúncio esta semana de que os Estados Unidos pretendem restabelecer relações diplomáticas com Cuba e levantar sanções comerciais que impõem ao país há 54 anos tem um significado especial para os brasileiros residentes no sul da Flórida. Miami hoje é uma cidade predominantemente cubana, com cerca de 1.2 milhão de cubanos vivendo na chamada Grande Miami, região que compreende Miami e cidades adjacentes, entre Homestead e West Palm Beach. Em algumas áreas a presença cubana é tão ostensiva que uma pergunta feita em inglês a um morador frequentemente é respondida em espanhol.
A migração cubana começou logo após a queda do regime de Fulgêncio Batista, em 1959, derrubado pelas forças de Fidel Castro, líder que implantou um regime socialista que perdura até hoje na ilha. Com a queda de Fulgêncio, milhares migraram para o estado americano vizinho, a Flórida, a meras 90 milhas de distância, a fim de escapar do novo regime, que acabou com a propriedade privada no país e cerceou liberdades de expressão e circulação em nome da revolução socialista.
Ao longo dos 55 anos de Castro no poder, centenas de milhares de cubanos deixaram a ilha de todas as formas possíveis. Desde os famigerados ‘balseros’, que encararam as águas do Estreito da Flórida usando todo tipo de embarcação imaginável para chegar aqui, até os chamados ‘Marielitos’, os cerca de 125 mil cubanos que saíram legalmente do país em 1980, autorizados pelo governo da ilha a embarcar em navios que partiram do porto de Mariel direto para Miami. De lá pra cá, outros milhares chegaram e ainda chegam quase diariamente à Flórida em busca do eldorado americano, favorecidos por uma política imigratória especial para cidadãos de Cuba, chamada de “política dos pés secos”. Segundo um acordo estabelecido em 1996 durante o governo de Bill Clinton, todo cidadão cubano que conseguir colocar os pés em solo americano pode requisitar asilo político e conseguir a residência permanente. Esse privilégio estimulou ainda mais a migração e colocou os cubanos numa categoria especial de imigrantes nos Estados Unidos, com facilidades que nunca foram estendidas para outras nacionalidades.
As relações entre os dois países foram-se deteriorando progressivamente desde a tomada do poder por Castro. A princípio disposto a reconhecer o novo governo estabelecido pela revolução de 1959, Washington logo temeu pela proliferação na América Latina do regime socialista implantado por Fidel e começou uma política ostensiva de restrições diplomáticas e comerciais com Cuba. As hostilidades chegaram ao seu ponto mais crítico em 1962, quando a então União Soviética pretendeu instalar mísseis em território cubano. O governo de John Kennedy mandou navios de guerra ao Atlântico e ameaçou confrontar qualquer embarcação soviética que trouxesse armamentos para Cuba. O mundo prendeu a respiração durante os treze dias de impasse, ameaçado por uma guerra nuclear entre as duas potências, até que o governo soviético de Nikita Kruschev recuou e trouxe de volta os navios que levariam os mísseis para a ilha. Antes desse episódio, que acabou entrando para a história com o nome de Crise dos Mísseis Cubanos, houve uma tentativa fracassada em 1961 para derrubar o governo de Fidel, organizada por rebeldes que desembarcaram na Baía dos Porcos, em Cuba, apoiados por um grupo paramilitar da CIA. Os rebeldes foram derrotados em três dias pelas forças cubanas.
Os dois países romperam relações diplomáticas em 1960 e Washington imediatamente impôs um embargo econômico que suspendeu toda espécie de comércio entre as duas economias. Proibiu viagens não autorizadas à ilha, como represália a denúncias de violações aos direitos humanos em Cuba, onde há até hoje restrições graves aos direitos individuais, como censura à liberdade de expressão e cerceamento do direito de ir e vir. O embargo que já dura mais de meio século–juntamente com a derrocada em 1989 da União Soviética, maior aliado militar e parceiro econômico de Cuba — isolou ainda mais a ilha caribenha e restringiu seu crescimento econômico de modo que as condições de vida por lá pioraram, embora longe da miséria em que vive ainda boa parte da população no resto da América Latina, e com algumas excelências significativas em medicina e educação.
Entretanto, o argumento do embargo, a princípio ancorado numa represália punitiva pelo cerceamento às liberdades individuais e ao desrespeito aos direitos humanos em Cuba, perdeu boa parte de seu sentido depois da queda do Muro de Berlim, em 1989. Era o fim da Guerra Fria, e não havia mais necessidade de combater com tanto zelo uma possível proliferação de regimes socialistas pelo mundo depois da queda do seu maior promotor, a União Soviética. A partir de então, regimes socialistas gradativamente abriram-se às possibilidades do capitalismo, como a própria URSS, agora novamente chamada de Rússia, e a China, que de um dos regimes socialistas mais fechados do mundo tornou-se a segunda economia do planeta, abrindo as portas à propriedade privada e à iniciativa empresarial individual. O regime chinês, entretanto, mantém muitas das violações aos direitos humanos que serviram de argumento para o embargo americano a Cuba. Isso nunca foi impedimento para que os Estados Unidos se tornassem o maior parceiro comercial da China, ainda que ela também seja governada por um regime socialista.
Outros países com restrições a liberdades individuais e violações dos direitos humanos, como a Arábia Saudita e o Paquistão, por exemplo, também são grandes aliados políticos e comerciais dos Estados Unidos. Assim, o argumento pelo embargo de que ele seria uma represália contra a política de direitos humanos em Cuba cai por terra, já que a mesma política não é praticada contra outras nações onde há as mesmas – ou até mais graves – práticas antidemocráticas. O argumento de contenção à proliferação do regime socialista pelo mundo também se tornou irrelevante depois do fim da URSS e da crescente capitalização da China, as duas únicas grandes potências socialistas que o mundo já viu.
Restou então a favor do embargo a pressão pela sua manutenção vinda dos cubanos nos Estados Unidos que dominam o cenário político em Miami e usam o seu antagonismo pessoal contra o governo castrista como moeda eleitoral junto ao governo federal. Além disso, a preservação do embargo e das restrições nas relações comerciais com Cuba favorecem a manutenção dos privilégios dos imigrantes cubanos através da política dos pés secos. Seu fim significaria uma mudança na condição dos imigrantes cubanos nos Estados Unidos, que teriam seus direitos nivelados aos de outros imigrantes de outras nacionalidades. Graças aos privilégios da política do pés secos, os imigrantes cubanos pouco se solidarizam à causa dos imigrantes indocumentados, com os quais jamais se identificaram. Seu maior expoente político nos Estados Unidos, o senador republicano Marco Rubio, filho de imigrantes cubanos, já se declarou contra a abertura nas relações entre EUA e Cuba proposta pelo governo de Obama, que ele julga como uma concessão ao regime socialista de Castro.
A visão de Rubio é totalmente equivocada. Em primeiro lugar, na comparação com as relações americanas com países como a China, por exemplo. O comércio e as relações diplomáticas americanas com a China estão longe de representar uma concessão ao regime de governo daquele país, e sua intensificação acabou levando para lá uma onda de capitalismo que catapultou a economia chinesa para o segundo posto entre as maiores do planeta, semeando o regime de mercado em pleno solo socialista. Em segundo lugar, na sua eficácia inexistente, visto que 54 anos de embargo não foram capazes de promover mudanças no regime cubano, mas somente de impor um isolamento econômico que, entre outros motivos internos, estimulou centenas de milhares de cubanos a migrarem como podiam da ilha para os Estados Unidos.
A abertura diplomática e econômica a Cuba, mediada pelo papa Francisco e acordada pelos presidentes Obama e Raul Castro, é uma iniciativa histórica que, se não vai libertar imediatamente o povo cubano de algumas limitações ainda vigentes na ilha, vai certamente promover uma verdadeira invasão capitalista na sua economia. O regime castrista já deu várias demonstrações de distensão política e econômica nos últimos anos. O restabelecimento das relações com os Estados Unidos é um passo importante para a reintegração da ilha na economia planetária, e como ato simbólico representa uma esperança de mudança nas relações internacionais, que têm de ser cada vez mais calcadas no cooperacionismo econômico que em conflitos ideológicos caducos.