Histórico

O enterro de Obama

Uraniano Mota*

Vocês desculpem o título acima. Ele me saiu do inconsciente. Eu pensava em escrever sobre o enterro de Mandela, mas de tanto ver fatos diversos da seriedade em torno do funeral de Mandela fui obrigado a aceitar esta ordem da subconsciência: falarei mesmo sobre o enterro de Obama. Tentarei explicar.

Notem que no enterro de Mandela a notícia que mais corre o mundo é a presença do presidente Obama. Desde o discurso, ele, o presidente norte-americano, se fez a maior estrela. Quem foi ver Mandela, viu Obama. Notem que beleza o ghost-writer de Barack Obama escreveu para a multidão:
“Para o povo da África do Sul, para aqueles que ele inspirou em todo o mundo – a morte de Madiba é justamente um momento de luto e um tempo para celebrar a sua vida heroica. Mas eu acredito que também devemos ter em cada um de nós um momento de autorreflexão. Com honestidade, independentemente de nosso estado ou circunstância, devemos perguntar: ‘Como eu apliquei suas lições em minha própria vida?’”.

E aqui, para a desgraça dos improvisos escritos com antecedência, a essa peça de retórica a realidade respondeu com uma loura fogosa, mais conhecida pelo nome de Helle Thorning-Schmidt, primeira-ministra da Dinamarca. As pessoas veem entre indignadas e surpresas, e com uma ponta de vouyeurismo picante, a sequência de fotos em que Obama troca tapinhas, rápidos toques de pernas e gargalhadas com a representante do reino da Dinamarca, entre explicações em que ele parece falar “eu posso até ser negro, baby, mas também sou presidente dos Estados Unidos. Portanto, vamo simbora”.

A partir daí, o enterro de Mandela se tornou o enterro de Obama. Não tanto porque desejemos vê-lo enterrado, ainda que a troca de pessoa de Mandela pela de Obama no caixão seria honrosa para a humanidade. Mas não por isso. A realidade se impõe, e faleceu quem o mundo precisa que estivesse vivo, lúcido e alto para responder à injustiça. Então encaremos com paciência, e com uma ponta de bom humor, o que Obama foi mesmo fazer naquele funeral.

É claro, bem antes desse grande final, ou seria um grande inicial?, toda a imprensa do mundo já se posicionara a favor de um enterro festivo. Não bastasse a presença do idiota George Bush, já existia e continua a existir no ar uma diluição da luta do líder africano. Em lugar do homem radical que pregou a revolta pelas armas, do líder comunista que possuía o maior respeito a Fidel Castro, se pôs o homem da conciliação, ou da reconciliação. É claro, isso não é novo. Até hoje não vimos um só homem de valor, de grande talento e gênio, que a sociedade não trate de descaracterizar após a morte. Isso aconteceu e acontece com Graciliano Ramos, com Niemeyer, com Lima Barreto, com Tolstói, com Mark Twain.

Já antes do enterro de Obama, Desmond Tutu, em artigo para o The Guardian escrevera que o período de prisão de Mandela havia sido importante para ele perder a raiva. “Mantenho que seu período na prisão foi necessário porque, quando foi preso, estava cheio de raiva. Mandela era relativamente jovem e tinha sido vítima de um erro da Justiça; ele não era um estadista, disposto a perdoar — era o comandante em chefe da ala armada do partido, que estava inteiramente disposta a recorrer à violência”, escreveu Desmond Tutu. No Brasil, esse cristianismo de cura pelo sofrimento sempre teve o nome mais simples de pedagogia do cacete.

No domingo, 8 de dezembro, o repórter do Fantástico, anunciara que o funeral seria uma semana de comemorações, no sentido mais vulgar mesmo da palavra, o significado de festa. E, diante das imagens do povo a cantar e dançar, ele concluía que o povo da África do Sul lamentava e celebrava ao mesmo tempo. Então o clima já estava pronto e formado para a maior animação. Obama, o novo conquistador de corações, somente pôde chegar lépido e feliz, charmoso e sedutor para a saudação ao morto. E do defunto tirou o melhor proveito. Assim como Mandela, que sempre rejeitou um retrato sem vida, pois sempre fez questão de afirmar que não era santo, que não passava de um pecador a continuar tentando, Obama não resistiu a qualquer santidade diante da tentação. Conforme se vê nas fotos que correm o mundo, depois do discurso vazio, mandou ver.

Dizem as notícias que após o “selfie”–que vem tornando-se uma febre entre celebridades e anônimos -, Obama e a ministra mostraram total entrosamento, conversando animadamente durante o funeral. Deveriam apenas acrescentar que para o defunto Mandela o enterro foi de Obama.

*Uriano Mota é escritor e
jornalista no Recife

Originalmente publicado
no site Direto da Redação.

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