Adriana L. Dutra*
Fui convidada para uma manifestação contra o feminicídio e o convite me fez pensar. Mas o meu pensamento já pairava nas mulheres, na questão do “empoderamento”, e já me via em defesa diante das críticas ao tal do “empoderamento”.
Muito se fala a respeito, mas poucos percebem a dimensão desta ação. Existe um fenômeno de repulsa que o tema, a palavra, o movimento do “empoderamento feminina” causa em algumas pessoas (algumas – sejam homens, mulheres ou outros gêneros), que é indecente diante da razão. Será que aqueles que criticam a palavra “empoderamento”, dizendo que gramaticalmente está errada, ou que tem uma estética estranha, é clichê, desnecessária, cafona, será que eles sabem que a história da mulher não tem História?
É impressionante quando nos debruçamos sobre os fatos e percebemos que a mulher foi simplesmente assassinada da história da construção das civilizações.
A religião hebraica existe há 5770 anos, a budista há perto de 2500, a cristã há 2017, e a islâmica, a mais jovem de todas essas religiões, há cerca de 1400. Em nenhum desses modelos religiosos e culturais a mulher existiu, a não ser como ventre sagrado ou prostituta.
Na Grécia Antiga, onde a criação do belo, das artes e do intelecto se construiu, a condição feminina era completamente subalterna em relação ao homem. Nas tragédias e comédias gregas, encenadas para multidões em lindos anfiteatros, os homens gregos faziam o papel feminino.
Na Idade Média, diga-se durante dez séculos de nossa História, a mulher foi quase dizimada como bruxa, louca ou devassa.
No Renascimento, a idade da luz dos tempos, as mulheres mais uma vez não se destacaram, continuavam submissas e excluídas de qualquer participação na sociedade.
O direito ao voto aconteceu muito recentemente. A Suíça concedeu o direito ao voto feminino em 1971. A Nova Zelândia em 1893, a Rússia em 1917, a Inglaterra em 1928, o Brasil em 1932, a França em 1944, o Japão em 1945, a Itália em 1946, e Israel em 1948, quando formou-se o estado.
Ainda hoje, entre muitos seguidores do islã, uma população que representa um quarto do planeta, a mulher não pode ter participação produtiva, não pode ter iniciativa, e até mesmo a liberdade de ir e vir não está sob seu controle. Mulheres só podem casar com um homem, enquanto seu parceiro pode ter quatro esposas. O marido pode deixar a mulher quando quiser, mas a mulher só pode deixá-lo em uma situação específica. O adultério feminino é punido com apedrejamento público ou enterramento em vida. No mundo árabe, o pai podia, até muito pouco tempo atrás, também enterrar suas filhas vivas, quando indesejadas. Na Itália, até 1985 os maridos podiam matar suas esposas em nome de sua honra. Hoje, em aldeias da África e Ásia, mulheres têm seus órgãos genitais mutilados para que não possam, jamais, sentir prazer. O estupro coletivo ainda é uma prática na Índia e em diversos países. Agora, na esquina de nossas casas, mulheres são assassinadas por seus maridos, normalmente por espancamento, por todo e qualquer motivo.
O honorário feminino é inferior em relação ao gênero masculino, mesmo que a mulher exerça a mesma função ou cargo com a mesma jornada de trabalho.
Sim, estamos avançando. Mas sentimos muita pena, pois não fazemos parte da História, do pensamento e da construção das sociedades. Não estamos na Bíblia, no Torá, no Corão e muito menos nos livros de História. Ok, estamos: somos mencionas como heroínas, mães, loucas, santas. É impressionante!
Existem muitas castrações e regras subjetivas para as mulheres. Perseveram ainda hoje as tradições do “não pode”. Mulheres não podem. Não podem sentar à vontade, não podem vestir o que desejam, não podem ter uma vida sexual descomprometida, não podem, não podem simplesmente ser.
Vivemos uma ingenuidade inconsciente e coletiva baseada no machismo, é uma patologia mundial.
Mas mesmo assim, diante toda a impossibilidade de oportunidades, muitas de nós não se curvaram, mas sim lutaram e se tornaram referência. Elas foram poucas, porém essenciais. Todas, mesmo sem querer, lutaram de alguma forma pela liberdade de todas as mulheres.
Os fatos são os fatos e diante deles qualquer palavra que represente uma ação que contraria a infeliz história que as mulheres não conseguiram jamais construir, é válida. Seja empoderamento, seja feminismo, seja o que for. Algum movimento há de existir e perdurar, caso contrário continuaremos assistindo ao feminicídio de muitas por aí, diariamente.
Adriana L. Dutra é cineasta, co-fundadora e co-diretora da Inffinito Foundation, produtora do Circuito Inffinito de Festivais, iniciativa cultural que leva festivais de cinema brasileiro pelo mundo, como o Brazilian Film Festival of Miami. Este artigo é parte da pesquisa e argumento para um próximo documentário.