Meus dentes pagaram o preço por eu ter comido tanta porcaria quando pequeno. Antigamente não havia adição de flúor na água da rua nem em pasta de dentes, nossas escovas eram pré-históricas, não existiam chicletes com adoçantes, só com açúcar corrosivo mesmo. Quando os dentes doíam, meu pai me levava em um dentista amigo seu – que além de dentista, era advogado. Seu consultório era todo em madeira escura, cheio de livros e meio sombrio. A sala de espera parecia inspirada em livros da Ágata Christie, com porta-chapéus e tudo mais – eu ficava sentado ali, esperando a tortura por vários minutos.
Para quem não conheceu restaurações de amálgama, vou explicar como funcionava. Imagine que na parede de sua casa caiu um prego pequeno e você precisa tampar o furinho. Então pega uma marreta e uma britadeira, arregaça tudo para depois encher com cimento e massa corrida. Era assim. Uma pequena cárie só podia segurar o amálgama se o buraco fosse grande o suficiente, aí ele pegava aquelas brocas meio cegas de dentro de uma caixinha de metal (esterilizar para quê?), colocava no motorzinho de alta rotação e zuuuuuuummmm, abria uma cratera. De vez em quando baixava o Gengis Kahn sádico e usava o motorzinho de baixa rotação, movido com polias e correia de couro – só de lembrar, meus pelos do braço arrepiam! Anestesia? Naquele consultório funcionava assim: “Se doer, levante o braço” e eu respondia “uhffhfffhhuh” com a boca estufada de algodão.
No bem da verdade, agradeço que ele só usou anestesia quando tratou um canal (eu era resistente à dor, mas não para isso). A seringa e a agulha não eram descartáveis, ele “esterilizava” a ponta da agulha no bico de Bunsen, e “lavava” o êmbolo no álcool. Eram outros tempos, ainda não existiam bactérias ou vírus. Também não havia necessidade de usar luvas ou máscaras. Só incomodava um pouco o fato de ele fumar na sala enquanto o amálgama endurecia, depois ele lavava as mãos e voltava para terminar o serviço na minha boca, com bafo de cigarro.
Depois de adulto comecei a tratar os dentes em um consultório mais moderno, a dentista inclusive usou um produto fantástico para tampar as crateras, resina na cor do dente ao invés de amálgama! Pensei “puxa, quer dizer que não acabarei como o vilão do 007, o Jaws?” (interpretado pelo gigante Richard Kiel, que tinha dentes metálicos). Com o passar do tempo ela foi trocando as restaurações de amálgama por resina, e meus dentes voltaram a ficar amarelos – já que nunca foram brancos.
Hoje em dia é fácil encontrar gente que nunca teve cárie. Na época de meus pais e avós o difícil era achar pessoas com mais de 40 ou 50 anos que não estivessem banguelas. Minha mãe teve um dentista pior que o meu (fico imaginando aqueles indianos arrancando dentes na calçada, sem higiene alguma), fizeram uma desgraça em sua boca. Mas aos sessenta anos ela implantou vários dentes, e os mantêm em ordem até hoje aos oitenta. Já minha avó se encheu de ir ao dentista aos quarenta anos, e pediu para arrancarem tudo para colocar dentadura! Também, para que uma “idosa” com aquela idade precisava de dentes?