No dia 8 de agosto de 2020, a polícia de Jacksonville, na Flórida, foi acionada por vizinhos do apartamento em que morava a paulista Anita Abdel-Majid, de 50 anos, que a ouviram implorar por ajuda. Ao chegarem no endereço, os agentes encontraram Anita na sacada do imóvel, ensanguentada. Eles chamaram a ambulância e tentaram reanimá-la, mas ela não sobreviveu aos 111 golpes de faca que recebeu do então companheiro.
Em outubro de 2021, Laura Martelli, 39, foi atropelada e morta propositalmente pelo ex-namorado em Conroe, no Texas. Deborah Evangelista Brandão, 34, foi assassinada pelo marido na frente dos filhos de sete e três anos de idade em Phoenixville, Pensilvânia. A bancária Nadir Veríssimo, 52, foi asfixiada pelo companheiro da sua inquilina em Pompano Beach, nas vésperas do Thanksgiving. Na última semana, Lavínia Carvalho, de 23 anos, foi encontrada desacordada no quintal de casa em Cumming, na Geórgia, após ser estrangulada pelo namorado.
Casos como estes têm sido reportados com cada vez mais frequência e chocam a comunidade. Além de vítimas de feminicídio, essas e várias outras brasileiras tinham em comum a busca por uma nova vida nos EUA.
Maria* (nome fictício), mudou-se de Anápolis, Goiás, para Deerfield Beach, Flórida, em 2017. Ela contou que as agressões sofridas pelo ex-namorado eram tantas que já não se reconhecia mais. “Eu me olhava no espelho e sentia vergonha de quem eu era. Vim sozinha para cá e apanhei, fui ameaçada, tive minha intimidade exposta”, relatou. O relacionamento abusivo durou mais de um ano e, após o término, ela se submeteu a uma longa terapia pós-traumática. “Na época, eu só queria me matar, tinha vergonha de voltar para o Brasil como uma perdedora. Hoje, meu maior arrependimento é não ter denunciado meu agressor. Eu tinha medo”, lamenta.
O temor de Maria* pode ser explicado por um estudo de 2019 da organização sem fins lucrativos Futures Whitout Violence, com sede na Califórnia. Segundo a instituição, as imigrantes têm mais chances de silenciar diante de uma agressão do que as cidadãs americanas. Entre as razões, está a sensação de terem menos acesso a serviços legais e sociais no país. Além disso, “os abusadores, muitas vezes, usam o status imigratório de suas parceiras como ferramenta de controle; de modo especial quando se trata de indocumentadas”, diz o estudo.
Hoje livre da relação abusiva e casada com um cidadão dos EUA, Maria* tem consciência que, na época, poderia ter recebido proteção policial sem risco de ser punida por estar ilegalmente no país. “Todas as pessoas são protegidas contra violência doméstica nos EUA, de acordo com a lei”, disse ao AcheiUSA a tenente Shelunda Cooper, da Divisão de Atendimento às Vítimas de Violência da Polícia de Broward. A tentente enfatizou que a condição imigratória não é levada em consideração em investigações envolvendo imigrantes em situação de abuso físico ou psicológico. “O Broward Sheriff’s Office apura esses casos, sem preconceito, e incentiva todas a denunciar seus agressores. Quando estiverem prontas, estaremos aqui para ajudar”, declarou.
“Todas as pessoas são protegidas contra violência doméstica nos EUA, independentemente do status imigratório”
— Shelunda Cooper, tentente da Polícia de Broward
Mulheres indocumentadas que foram abusadas em território americano por um indivíduo também indocumentado podem ainda se qualificar para o visto U, que tem cota anual de dez mil concessões. O objetivo é encorajar a vítima a denunciar os criminosos, já que muitas não o fazem por medo de ser deportadas. As beneficiárias do visto U passam a ter direito de trabalhar e estudar no país. Embora a cota seja atingida rapidamente a cada ano, é possível ficar em uma lista de espera.
Renata Castro, advogada especializada em imigração, destaca que não apenas a violência física, mas emocional, sexual e psicológica são considerados. “85% dos processos de violência doméstica que tramitam no meu escritório são de homens e mulheres que sofreram abusos não físicos, no sentido de não haver ataque físico, mas emocional, psicológico, verbal, sexual, onde, mesmo dentro do casamento, não havia consentimento por uma das partes”, falou.
O Estado Americano também dispõe da VAWA (Violence Against Women Act). A lei criada em 1994 durante o governo do ex-presidente Bill Clinton sofreu um duro golpe em 2012, quando conservadores republicanos se opuseram a oferecer green cards para casais do mesmo sexo e estrangeiras que chegaram ilegalmente aos EUA, apesar de serem vítimas de violência. Para se enquadrar no benefício da VAWA, o agressor precisa ser cidadão ou residente permanente. O benefício da lei pode ser aplicado mesmo se a violação tenha acontecido antes de o acusado adquirir um green card ou cidadania.
A violência que se esconde no silêncio
Quando o assunto é violência doméstica a primeira imagem que vem à mente é uma mulher com olho roxo. Mas essa é só a ponta do iceberg. Quando a agressão acontece, muitas outras formas de abusos já ocorreram. A Lei brasileira 11340 de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha, identifica cinco formas de violência doméstica: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. A psicóloga Kellen Frajorge alerta que é preciso reconhecer e denunciar nos primeiros sinais de cada uma delas. Segundo ela, há quem nem saiba ser vítima de violência, pois entende que a única forma seja a física.
Outra situação, de acordo com especialista, é que às vezes elas sentem vergonha de estar passando por isso e se calam. Ela explicou que fatores como dependência financeira, filhos e até ameaças bloqueiam uma reação por parte da vítima. Neste estágio, entra a parte do acolhimento. “É preciso escutar, entender, empoderar, isso salva vidas mesmo”, afirmou.
“Seu silêncio pode ser tão agressor quanto a violência que você sofre”
— João Mendes, Cônsul-Geral do Brasil em Miami
Somente no ano 2021, o Consulado-Geral do Brasil em Miami registrou 76 pedidos de socorro de brasileiras em relacionamentos violentos. O cônsul João Mendes relatou que muitas ligaram, se registraram e nunca mais foram localizadas para iniciar um processo de denúncia e acolhimento. “Quando vamos retornar, elas desaparecem”, disse o diplomata. Ele informou que a instituição mapeia os casos para “melhor atender às necessidades da comunidade brasileira”.
Serviços como atendimento psicológico e orientação jurídica são oferecidos gratuitamente. Não há um dado exato de quantas brasileiras foram vítimas de violência doméstica nos EUA, mas a quantidade de denúncias e casos fatais repercutidos pela imprensa indicam aumento substancial. “Os números que temos estão subjugados, há muito mais que isso”, alertou Mendes, acrescentando: “O seu silêncio pode ser tão agressor quanto a violência que você sofre. Busquem apoio, sobretudo no início, porque pode evitar que aconteça o pior. O Consulado estará à disposição para ajudar. Não silencie! O silêncio agride tanto quanto a violência”.
Se você sente estar correndo risco de vida, não hesite, ligue 911 e peça ajuda. Se você não fala inglês diga “Portuguese, Brazil” e um intérprete será conectado imediatamente. Certifique-se de falar todos os detalhes do acontecimento.