Como a maioria dos jornalistas, comecei na profissão escrevendo obituários… no jornal O Dia, do Rio de Janeiro. Nas redações, esta é a função atribuída aos estagiários ou “focas” (repórteres iniciantes). Agora, volto mais de 30 anos no tempo para me despedir e homenagear a amiga e colega de profissão Vanuza Ramos, que nos deixou no último dia 25 de julho, aos 47 anos, vítima de um câncer contra o qual lutava desde fevereiro do ano passado.
Mas escrever estas linhas também serviu para lembrar do início da minha jornada aqui nos Estados Unidos, quando por vários anos, de 2006 a 2011, eu e Vanuza trabalhamos juntos no AcheiUSA: eu sempre como jornalista e ela como jornalista, diagramadora, designer publicitária, fotógrafa ou qualquer outra função que aparecesse. Ela era assim, não fugia de trabalho ou desafios. Nos quase 20 anos que passou na América, além das atividades na mídia comunitária, foi garçonete, trabalhou em uma gráfica, atuou como uma espécie de despachante informal para ajudar brasileiros a abrir empresas e declarar imposto de renda, foi relações públicas de empresas e, principalmente, produziu shows e eventos culturais.
Aliás, aí está outra característica de Vanuza. Ela foi uma incansável incentivadora da cultura e dos artistas locais. A sua empresa, Zueira Productions, organizou por um bom tempo o ‘Terças Culturais’, que era um espaço aberto aos talentos da comunidade. Foi ela também que, ao lado da amiga Bárbara Rocha, lançou uma das mais tradicionais e autênticas festas de carnaval do sul da Flórida, o Carnazueira. O nome de Vanuza também está associado à realização de algumas das apresentações mais concorridas aqui na nossa região, como o show da dupla de sertanejo universitário, Jorge e Mateus, que agitou o inverno de 2011 em Fort Lauderdale.
A cultura realmente estava no DNA de Vanuza. Na sua terra natal, a Paraíba, ela foi praticamente uma setorista do assunto, tanto no Jornal da Paraíba como na TV Borborema. Mas foi aqui no sul da Flórida, desde 2001, que ela deu sua maior contribuição profissional: não imagino que será possível encontrar outros jornalistas com tanta capacidade de apurar e escrever matérias sobre a comunidade. Ela sempre tinha uma pauta ou sabia de algum fato relacionado aos brasileiros. E isso porque Vanuza vivia e se relacionava com todos da comunidade. Nesse sentido, a mídia comunitária brasileira, em sua essência, perdeu a sua principal representante.
Mas quem conheceu Vanuza sabe que não era fácil conviver com ela. Turrona, orgulhosa e mal-humorada, ela por muitas vezes, na minha opinião, alimentou essa fama de um temperamento forte, que mais lhe servia como uma proteção. No entanto, sabendo o momento e o jeitinho certo, era possível ter gostosas conversas sobre os mais variados assuntos e até arrancar dela as mais íntimas confidências e revelações. E assim convivemos diariamente por mais de cinco anos. Alguns dias, sem trocarmos uma palavra, e outros, como amigos inseparáveis.
Com as voltas que a vida dá, acabamos nos afastando um pouco e os contatos se limitaram às datas festivas ou em função de alguma novidade ou fofoca – e ali estava uma pessoa sempre muito bem-informada. Quando soube do diagnóstico de câncer no peritônio/ovário, logo depois do seu aniversário, em 2019, liguei para Vanuza para dar uma força, mas foi ela quem acabou sendo mais positiva do que eu. Mulher forte, não se permitia o direito de fraquejar. Mesmo otimista, ela deixava transparecer a apreensão em virtude do significado terrível da doença.
Segundo Mônica Ramos, irmã de Vanuza, que esteve ao lado dela nestes últimos meses, a fase final foi muito complicada. Um novo tumor foi detectado no início do ano, desta vez na bexiga, indicando metástase e, por isso, precisou reforçar a medicação contra as dores. O que mais a abateu, porém, foi a proibição das visitas ao hospital, por conta da COVID-19. Em várias oportunidades, passava as noites em claro com medo de fechar os olhos e não acordar, conforme confidenciou para a irmã.
Mesmo debilitada e entre as duas últimas internações, Vanuza realizou um sonho: uma viagem de carro, da Flórida até o Wisconsin, onde mora outra irmã, Verônica. Nesta ‘road trip’ e com a ajuda de um andador e, por vezes, cadeira de rodas, Vanuza conheceu cidades como Nashville, Memphis e Nova Orleans, não por acaso locais ricos em cultura e música. Foram 12 dias em junho, que serviram como uma espécie de despedida. “Foi o nosso São João”, disse Mônica, lembrando uma frase dita por Vanuza durante o passeio, em referência à sua Campina Grande, “a terra da maior Festa Junina do mundo”.
Vanuza partiu e a família irá realizar seu último desejo – após a cremação, as cinzas serão levadas para Campina Grande, provavelmente para que ela reencontre o Açude Velho, o principal cartão postal da cidade. A “Mãinha”, Maria dos Anjos, que está perto de completar 75 anos, impossibilitada de vir aos Estados Unidos, aguarda o momento para se despedir pela última vez da filha.
Por aqui, os amigos mais próximos tentam agora concretizar outro dos objetivos de Vanuza: a criação de uma fundação de incentivo à cultura brasileira no sul da Flórida. Esse, aliás, era um plano para ser colocado em prática ainda em vida, mas não houve tempo. Se algo serve de consolo, pelo menos agora não há dúvida em relação ao nome que esta instituição vai receber. De qualquer forma, o trabalho e as histórias de Vanuza já estão eternizados nos vários veículos de mídia comunitária nos quais ela trabalhou e também em livros, já que ela participou como escritora das duas edições da coletânea “Brava Gente Brasileira em Terras Estrangeiras”.
Enfim, bateu muita saudade daquele tempo gostoso no AcheiUSA, das conversas, do estresse do fechamento da edição… vai em paz, Vanuzete!
Para ajudar com as despesas da cremação, envie qualquer colaboração pela rede de pagamentos digitais Zelle, em nome de Mônica Ramos – monicacgd@gmail.com