Por Vanuza Ramos
A fome não chega a incomodar. Não há tempo nem condições psicólogicas para lembrar dela, ou de outras necessidades fisiológicas – como urinar e defecar. Só a sede incomoda um pouco; mas até ela é esquecida quando o instinto de sobrevivência avisa que é hora de correr e correr. Só o som de helicópteros, carros e motos são audíveis na imensidão do deserto do Texas e, ás vezes, a voz do coiote: “- é a imigração, é a imigração”.
É assim para a maioria das pessoas que tentam a sorte pela fronteira. “Eu tomei 16 buscopam para poder conseguir (andar sem comer, nem beber)”, lembra na sua simplicidade C.M., que após vários dias de encontros e desencontros no México, conheceu uma realidade que nunca havia passado pela sua mente.
Ele, no seu grupo de travessia, talvez fosse o que mais ignorasse o que vinha pela frente. Logo na primeira noite teve que ficar a noite inteira, na fronteira, esperando o momento de distração da troca de guarda para atravessar uma serra. Começaram então a caminhada, que não foi tranquila. Eles paravam durante o dia e andavam à noite. “Eu cheguei a ficar um dia inteiro em um buraco do chão, sem comer e sem beber”, lembra sem saudade. O buraco em questão não era uma caverna mas uma cova rasa – uma pequena depressão no solo que mal cobre um corpo.
À noite, caminhando, viria a primeira grande surpresa: a primeira perseguição. Das 8PM até 1AM foram perseguidos por três policiais montados em motos, com faroletes ligados. Apesar do aparato, a sorte ajudou a turma. Durante a perseguição o grupo se jogou no chão. Um dos policiais passou com a moto por cima da alça da mochila de C.M., no chão, e não percebeu a sua presença. Mais algumas voltas de moto e os policiais ainda não conseguiram vê-los. “Eu ficava rezando e foi incrível; eu via ele (o policial) e ele não me via; parecia que eu tava invisível”, relata ele ainda incrédulo da sorte.
Caçada policial
Nessas horas os imigrantes não conseguem nem respirar; e os policiais, apesar de bem treinados, só olham para cima. Com o tempo eles desisistiram e se foram. Para os imigrantes a caminhada continuou e só parou durante o dia; o segundo de travessia, ainda sem comer nem beber. Durante o dia outra vez passariam pelo sufoco de quase serem descobertos pela imigração, que desta vez os caçava com helicópteros – como é rotina na região. Veio a terceira noite e outro dia, e outra noite.”O coiote tinha se perdido e a gente tava só dando voltas”, lembra. Isso não é incomum. Às vezes, depois de várias perseguições, os coiotes perdem o rumo.
Caminhando de ré.
“A gente tinha previsão de andar uma noite, mas toda vez que a gente perguntava para o coiote quanto tempo faltava ele dizia: -só mais uma hora. Eu acho que ela estava perdido”, conta D.B., que quanto mais via o tempo passar mais se preocupava. “O guia não tinha mais que 13 anos; era muito novo”, lembra D., para explicar a inexperiência e inabilidade do coiote. Como o comércio de tráfico de imigrantes é a maior opção de renda familiar no México, cada vez mais os homens estão entrando mais cedo no mercado; o mais comum, ultimamente, são jovens de 13 a 18 anos trabalhando na fronteira, como atravessadores – e às vezes, mas bem raramente, mulheres também.
Já há um dia sem comer nem beber, eles D.B. e seu grupo se viram no paraíso quando encontraram uma poça d’agua, numa pedra. A água suja, quase preta, refrescou a turma. “O pior era o corpo cansado; teve uma hora que eu ‘travei’; minhas pernas não andavam”, relata ele, que durante uma parte da travessia teve que andar de costas para deixar as marcas de pé ao contrário e confundir o rastreamento da polícia.
Mais outro dia de caminhada, sem a certeza de estar indo no caminho certo, eles encontraram uma fazenda, onde puderam tomar água de verdade. A partir daí a pior parte da história já havia terminado. Mais algum tempo andando, também sem comer, eles completaram duas noites e um dia de sufoco mas encontrariam, então, a estrada onde entraram em um carro e foram para Phoenix. “Parecia coisa de cinema. A gente ficou embaixo do asfalto, escondido, e quando o carro chegou a gente nem podia pensar; eles abriram a porta, sem parar o carro, e a gente correu e entrou. Tudo em velocidade”, recorda.
Começava então o sonho americano, 10 mil dólares e 41 dias depois de ter saído do Brasil, e terminava o medo de ver algum companheiro ficando para trás; ou até mesmo morrendo diante da pressão física e psicológica.
Cadáver pelo caminho
O medo não era infundado. Entre os que atravessam pelo México é comum o relato de detritos encontrados pelo caminho, o que remonta no campo psicológico de cada um a possibilidade de não chegar ao destino. A cada roupa, sapato e outros objetos pessoais encontrados pelo deserto, é impossível não imaginar o que teria acontecido com essas pessoas. “Eu não vi, mas enquanto estava preso no presídio da imigração (leia detalhes na próxima edição) ouvi histórias de pessoas que diziam terem encontrado cadáver pelo caminho. Também ouvi a história de uma mexicana que havia sido estuprada por 15 homens, na frente do marido. A gente fica impotente diante de coisas como essa”, destaca J.V., que até hoje se revolta quando lembra da nulidade que têm que assumir no deserto.
“Quando eu pisei no deserto senti que alguma coisa ia acontecer. E não demos cinquenta passos quando surgiram dois caras, armados com pistola automática, e nos roubaram. Os coiotes sentaram e ficaram rindo”, relembra. O jovem chegou a ter as calcas rasgadas pelos bandidos. “Quando eles pegaram uma faca eu senti o pior”, diz. Mas o pior não veio. Ele só rasgou as calças do jovem para roubar um dinheiro que estava escondido e depois se foi.
Cinco numa mala de carro
Tão revoltante quanto ter seu dinheiro roubado é ter que abrir mão dos seus bens pessoais. “Nós só tínhamos nossa mochila e tivemos que jogá-la fora”, contam os irmãos I.S. e F.S., que antes da caminhada receberam comida enlatada e água para consumo.
Saíram do México em uma Van, onde andaram duas horas até chegar no deserto. Caminharam 40 minutos até chegar a outros carros -“4 ou 5 camionetes; a gente foi que nem pau-de-arara”-, nos quais andaram mais quarenta minutos antes de começarem a caminhada. Eram 7AM de uma sexta-feira e só no sábado, às 4PM, chegariam ao destino. “A gente parava a cada duas horas para descansar, por dez minutos. De longe dava para ouvir barulho de avião, de helicóptero…os aviões eram ‘invisíveis'”, contam os jovens, querendo dizer que não conseguiam ver os veículos.
O grupo era de 35 pessoas, que já haviam dado voltas e voltas pelo deserto. Não tiveram experiência de perseguição mas amargaram a dura experiência de serem encaixotados em uma mala de carro – um Cherokee- com outras três pessoas. “Nesse momento a gente teve que jogar fora as mochilas”, recordam entristecidos. Não havia nada muito valioso na bolsa. “Mas eram coisas de valor sentimental; roupas e objetos pessoais”, relatam os meninos que tiveram dificuldade de se desfazer dos pertences.
“A gente pensa que está psicologicamente preparado mas nunca está”, contam os irmãos que após vários dias de extorsão no México e da exaustiva travessia tiveram que esperar vários dias, já nos Estados Unidos, pela liberação que dependia do dinheiro extra pedido aos parentes da dupla. O valor combinado era de 4 mil dólares pelos dois, mas devido a um problema com o coiote, que foi preso, tiveram que ser guiados por outra pessoa – até hoje não há evidência da veracidade do motivo alegado já que o contato dos parentes com o coiote foi sempre por telefone. Esse outro coiote, porém, exigiu 4,500 dólares por cada um, o que os parentes deles, na Flórida, só tiveram dois dias para providenciar. Um detalhe: para mexicanos e guatematecos o preço pedido era de 1.800 a 2.000 dólares.
De uma segunda até a quinta-feira tiveram que ficar em uma casa, no Texas,m esperando pela liberação, sem desconfiar que os parentes estavam sendo pressionados a pagarem mais. E com a irmã só tinha o direito de falar alguns minutos; aqui na Flórida, entretanto, os parentes aflitos já pensavam que o pior podia acontecer. Na quinta-feira os meninos embarcariam para a Flórida onde hoje engrossam a fila dos sub-empregados ilegais.