Por Vanuza Ramos
Apesar de todas as dificuldades encontradas pelo caminho o principal temor de quem entra nos Estados Unidos pelo deserto do México é, indiscutivelmente, ter o sonho americano interrompido por policiais de imigração. Nem mesmo a incerteza e a hostilidade do deserto e da convivência com os ‘coiotes’ assustam tanto; nem também a possibilidade de serem assaltados, extorquidos, agredidos. Só mesmo a possibilidade de serem pegos pela imigração impõe medo aos ilegais da fronteira. Alguns brasileiros já viveram essa experiência e relatam a tristeza e o desespero de quem passa pelas ‘garras’ da polícia.
O pior não é a deportação mas os dias que a pessoa fica detida na prisão, convivendo até com bandidos de alta periculosidade. “Se eu soubesse 30% do que iria acontecer comigo eu não teria vindo”, diz J.V., 34 anos, que deixou uma vida confortável em São Paulo para trabalhar nos Estados Unidos.
Ele, em companhia do primo, W.P., 50 anos, e de outro amigo, chegaram no México no dia 9 de novembro de 2002. Teriam que encontrar um homem chamado Miguel, na cidade de Águas Pretas, com o qual atravessariam a fronteira. Já na Cidade do México o amigo se perdeu dos dois primos e resolveu seguir por conta própria até Hermocílio.
Os dois primos seguiram para a cidade de Águas Pretas onde foram abordados por várias pessoas. “Logo quando a gente parou várias pessoas cercaram a van perguntando:- “con quién vás?”, conta. O assédio é uma demonstração de como o mercado de travessia pela fronteira é conduzido sem disfarces. Tudo é negociado quase às claras e com a conivência muda das autoridades mexicanas. Após descerem da van e fugirem do assédio os dois primos buscaram um hotel.
À noite, enquanto dormiam – dividindo a mesma cama- foram despertados por batidas na porta de um suposto Miguel. “Ele dizia ser o Miguel mas não conhecia o contato de Phoenix”, relata. O Miguel seria o homem responsável por atravessar os brasileiros. Naquela noite os primos não conseguiram dormir; esperaram amanhecer para entrar em contato com a Flórida onde receberiam o nome do hotel para o qual deveriam seguir – o Garnous, em Hermocílio. Mas, desconfiados do coiote, não quiseram seguir com ele.
“Eles só perguntavam: ‘vocês estão com o dinheiro?’; a gente tinha medo e achava que ele podia estar querendo nos roubar. A cara dele não inspirava confiança”, conta J.V. No hotel onde estavam ficaram sabendo através da recepcionista sobre uma mulher que os ajudaria a entrar no país. Nesta cidade já haviam reencontrado o amigo perdido na Cidade do México. Fizeram contato com essa coiote e marcaram a saída para o dia 15 de novembro. “A gente foi orientado a levar comida, água; e não seriam mais 1h30 de travessia mas sim 3 dias. Aí eu já vi que tinha entrado numa fria”, conta.
Em um grupo de quatorze pessoas, incluindo o coiote, seguiram pelo deserto. Na primeira noite foram assaltados, seguiram caminhando e tiveram que parar para se esconder após verem um carro da imigração. “A gente ficou escondido por um tempo e começou a caminhar outra vez, à 1h da manhã. Logo depois veio outro carro e eles mandaram correr outra vez”, recorda o paulista.
Nesse momento os três brasileiros se separariam outra vez já que o grupo se dividiu. Eles correram das 20h às 1h30, agachados da altura da vegetação – com cerca de 1m- para não serem vistos pela polícia. Os coiotes acabaram perdendo a rota e indo por outro caminho. Encontraram uma vegetação mais alta, mas espinhosa, onde se esconderam. Os policiais já tinham deixado os veículos e estavam seguindo-os a pé. Às 3h30 saíram da moita e seguiram andando, sempre com a polícia no encalço, mas devido a vegetação os oficiais de imigração não conseguiam vê-los. “A essa altura a gente não tinha mais resistência. A gente tinha corrido horas abaixados; a coluna doía, o corpo doía e ainda tínhamos que subir uma montanha. E o meu primo, mais velho, quase não conseguia andar. Ele andava e caía. Ficava uns 50m para trás e eu voltava para ajudá-lo”, conta.
O primo, ensanguentado, amarrotado, falava para o jovem seguir em frente e abandoná-lo, o que ele não fez. Tendo voltado várias vezes para auxiliar o primo eles acabaram se distanciando do grupo. Seguiram por conta própria, se escondendo entre um arbusto e outro. “Os policiais passaram a dois metros da moita e não viram a gente. Depois eles voltaram e não viram outra vez”, relata.
J.V. e W.P. pensaram que estavam livres e continuaram a subida. No topo da montanha viram uma cidade a uns 300m, como quem encontra um oásis. Ao olharem para trás, porém, estavam cercados pela polícia. Não havia mais vontade nem condições físicas para tentar fugir. “Nós já estávamos machucados, cheio de espinhos pelo corpo, mancando e com os joelhos inchados”, conta J.V. Os policiais perguntaram se falavam espanhol, se estavam armados e se eram brasileiros. Os dois foram levados até o presídio onde foram ‘fichados’ e inquiridos. Eles perguntaram se queriam deportação voluntária, ao que W.P. respondeu que sim. Ele nem tinha muita opção já que havia sido deportado uma vez, do aeroporto, quando tentou entrar na Flórida legalmente.
J.V. respondeu que não; que não queria a deportação. Com a ajuda de membros do consulado, que traduziam tudo por telefone, eles foram orientados a proceder. Na prisão reencontrariam outra vez o amigo do qual tinham se separado no deserto. Outra vez juntos os três foram enviados para o presídio de imigração, onde ficaram quatro dias. Lá não foram maltratados. Tinham acesso a TV, máquina de refrigerantes e de salgadinhos. No quarto dia foram enviados para um presídio de segurança máxima do Arizona.
Chegando lá o clima era de repressão. Três dias antes três presos haviam morrido e as regalias haviam sido cortadas para todos. “A gente só saía para tomar sol”, conta o jovem que dividiu a cela com outros onze imigrantes, entre eles outro brasileiro que estava lá há 60 dias. Nessa prisão também não eram maltrados; a alimentação era regular, tinham acesso a telefonemas diariamente e não dividiam celas com presos comuns. Mas a angústia de não saber quando, e nem “se”, vão sair de lá é aterrorizante. “Lá bate a solidão, você não tem com quem falar. Só resta abrir a Bíblia”, lembra J. V. que escondeu da mãe o que estava acontecendo. Quando falava com ela por telefone só dizia que ainda não havia chegado na Flórida mas que não se preocupasse que ele estava bem.
Mas não estava. Ele se chocava ao ouvir dos colegas as história da fronteira. Estupros, cadáveres encontrados pelo caminho, corrupção. Se chocava ao ir tomar banho. “Tinha um hompossexual que sempre, na hora do banho, aproveitava para fazer sexo. Quase todo dia ele estava transando com um cara diferente”, revela o jovem, que para evitar a cena chocante aos seus princípios mudou seu horário de banho.
A angústia durou 27 dias. O primo foi embora para o Brasil dois dias antes e até hoje tenta voltar para os Estados Unidos, não cogita em qualquer hipótese vir pela Fronteira. O jovem paulista teve mais sorte. Conseguiu o direito de ficar no país e pedir asilo político, o que ele ainda tenta.
Questionado se valeu a pena os problemas, ele afirma que não. Assim como a maioria das pessoas que vêm pelo México, as oportunidades da terra do Tio Sam acabam sendo menos promissoras do que pareciam vistas do Brasil. Pelo menos o primeiro ano de América se esvai no cumprimento da dívida de empréstimo e seus juros – a maioria faz empréstimo, a juros altos, para vir pelo México. Os valores alcançam facilmente as cifras entre 15 e 30 mil reais (de 5 a 10 mil dólares). Com a renda média de 1.800 nos Estados Unidos não é fácil se livrar das dívidas e a lição que fica, para todos, é que a travessia pelo México é um preço financeira e psicologicamente muito alto para chegar nos Estados Unidos.
Eles acabam vivendo sem identidade, já que ao entrarem pelo México não conseguem documentação – até a legalização é quase impossível; nem casando com cidadão americano eles têm esse direito. Eles vivem também sem direitos civis mínimos como ter uma Driver’s License, comprar uma casa ou um carro – exceto quando usam o famoso ‘jeitinho’ brasileiro- o que os coloca em um submundo cultural e social onde a vida se resume a dormir e acordar para economizar dólares e quem sabe um dia descobrir o que significa viver o tão decantado american dream.