Reportagens Especiais

A fé na comunidade (V) – Candomblé: O culto discriminado

Vanuza Ramos*

“Existem mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia”

A citação de William Shakespeare se encaixa com perfeição em algumas expressões religiosas. Religiões como o candomblé, por exemplo, originária da África e que se instalou no Brasil no século 19.
Segundo a filosofia dessa religião, entre o céu e a terra há muitas entidades espirituais, donas do tempo e das forças da natureza, que comandam os atos dos seus seguidores. São deuses do tempo, da vida, das águas, do fogo e de outras forças e energias que guiam seus filhos. Um desses filhos, o pai de santo Jordan Leite, vem desenvolvendo a religião nos Estados Unidos há 12 anos. Desde 1993, o carioca está morando na Flórida e há três anos abriu, oficialmente, a casa Ilê Axé Began Orun Dagan Dijexá. Ainda não há um templo, onde o grupo liderado por ele possa realizar seus cultos de adoração e orações para desenvolvimento dos orixás e médiuns. A dificuldade, segundo afirma, deve-se à burocracia e ao código de construções da cidade, já que os cultos acontecem ao som de tambores e atabaques, o que dificulta a aprovação. Mas o projeto continua em andamento.

Por enquanto, as reuniões acontecem na casa Ilê Axé, em Fort Lauderdale, onde os 40 filhos da casa se reúnem, periodicamente, para cultuar seus santos e fazerem suas “obrigações” (as obrigações são os preceitos solicitados pelos santos e precisam ser cumpridos pelos filhos dos santos). Nessa casa são recolhidos os iaôs – filhos de santo iniciantes. Esse recolhimento é um ritual que pode durar de três dias a uma semana, onde a pessoa passa pelos preceitos requeridos pelo orixá – os preceitos são vistos no jogo de búzios.

Exus e orixás – No centro há salas separadas para os exus e orixás. Os exus são mensageiros – alguns mais populares como a cigana Maria Padilha, o Sr. Tranca Rua, Seu Caveira, Figueira etc. São as entidades que auxiliam o pai de santo na hora de jogar os búzios, na sala de jogo. Os orixás ficam assentados na outra sala, onde são feitas as oferendas, obrigações e os recolhimentos dos filhos de santo.

“Os exus são os mensageiros dos orixás; os orixás mandam e eles cumprem. São os bons secretários. Não existe nenhuma ligação dos exus com o diabo. Isso é história da carochinha”, revela. Mas ele admite que muitos pais de santos e donos de centros de candomblé e umbanda se beneficiam com o lado negativo da religião. “Num dado momento, no Brasil, interessou à Igreja Católica essa fusão da imagem negativa; mostrando aquelas mulheres de preto e vermelho, recebendo a pomba-gira. Foi a Igreja Católica que associou a imagem do candomblé ao diabo, para meter medo. E hoje muitos pais de santo seguem essa tendência. Faz bem para eles também essa imagem negativa. Mas esses são os que lidam com a quimbanda – que trata do lago negativo”, declara. Na religião, existem a umbanda e a quimbanda, que aqui é muito usada pelos haitianos. A umbanda usa os poderes do santo de forma positiva; a quimbanda, de forma negativa.

Início na Flórida – Na Flórida, Jordan começou jogando búzios em 1993, no seu apartamento. Atendia um ou outro amigo e assim a religião foi crescendo. Ele considera seu trabalho uma “luta de titã”. Não veio aqui com intenção de morar nem de instalar sua casa na cidade, mas aos poucos viu sua vida transferida para os EUA por causa da filha, que casou com um americano. “Não me dei conta que comecei o movimento de trazer uma religião estranha para os EUA. Foi a primeira casa de santo brasileira, aberta na Flórida. Outras casas foram abertas e fechadas; muitos seguidores de umbanda realizam seus cultos nas suas casas, mas com casa oficialmente aberta e reconhecida pela Federação Brasileira é a única”, afirma o filho de oxum, seguidor do candomblé puro.

Ele lida com naturalidade com as críticas e procura respeitar todas as formas de crença. “Qualquer caminho que te leve a Deus, é válido. Não faço distinção se você é judia, evangélica ou católica. Acho que se é bom para você, ótimo”, afirma. No centro dele recebe pessoas de todas as tendências, que nem sempre assumem a simpatia pelo candomblé; por preconceito ou medo de rejeição buscam a religião às escondidas. Em seu centro, Jordan recebe muitos clientes judeus, hispânicos e brasileiros, de tendências evangélicas ou católica.

“Muitas pessoas se consultam aqui, comigo, mas quando me encontram em uma festa não me cumprimentam publicamente”, afirma Jordan. Esse tipo de comportamento incomoda o pai de santo, assim como o fato das pessoas buscarem o candomblé como meio de favorecimento pessoal. “Esse não é o objetivo da minha religião.

Minha religião é muito linda e merece ser respeitada. O povo quer religião para solucionar o problema deles, não para chegar a Deus.

Estou cheio de trabalhar para quem não é da religião; estou cansado de jogar para quem quer saber como ganhar 2 mil em vez de 1 mil; ou o que pode fazer para ganhar o green card; ou qual o santo que vai dar para ele o carro do ano. O jogo de búzios é para você ver o que os orixás querem que você faça para sua ‘vida no santo’ e não para tirar o marido de fulana, tirar a esposa de fulano ou fazer alguém se apaixonar por você. E 99% chega aqui querendo algo material ou amoroso”.

Outras religiões – Quando o assunto são as outras religiões, ele prefere não fazer comparações para não criar polêmica. Mas comenta: “Aqui há uma comunidade carente, que não tem papel, não pode ir no seu país ver os seus entes queridos; é humilhada, explorada. Isso é um caldeirão, cheio de emoções, e quando você chega com uma estrutura de marketing, conquista. A minha religião não tem marketing; você é do santo se tem amor. Eu não estou na Globo, de 15 em 15 minutos, dizendo:-Venha, Jesus lhe chama”, desabafa. “A minha religião é linda e merece respeito para quem trabalha com honestidade. Como em qualquer outra religião há pessoas boas e de má fé”, completa, exaltado, destacando o empreendimento que é seguir ao candomblé. “ O santo te toma muito tempo; você tem que estudar um idioma diferente. Não é fácil. Só segue a religião quem a ama. Você nasce ‘sendo do santo’ . Passa por um período de iniciação e estudo, que são sete anos. Depois desse período, a pessoa recebe um diploma, como se fosse uma universidade”, afirma.

Charlatões – Jordan também não mede palavras quando se trata de falar sobre charlatanismo. Ele admite que há quem use a fé alheia para favorecimento próprio e dá algumas dicas para que as pessoas saibam identificar os enganadores. Os santos não baixam na hora que a pessoa quer; eles vêm em horários e dias determinados. Até pequenas coisas, como sujeira, indicam que a casa não é de respeito. “Se você entrar numa casa de santo que é suja, sai fora. Os santos gostam de limpeza”, diz.

Sacrifício de corpos – Jordan também defende o fim da imagem dos pais de santo como pessoas incultas, que chamam palavrões, fumam charuto e vivem com uma garrafa de cachaça no braço. “Isso é coisa do passado”, e põe por terra a necessidade de sacrificar animais. “Na Grécia e na África, há muito tempo, eles faziam sacrifício de corpos humanos, depois passaram para sacrifício de animais e hoje em dia tem ervas, folha, que o sumo dela é como se fosse um sangue vegetal e que pode ser oferecido aos santos. Isso também está na hora de acabar. O orixá aceita o ‘sangue vegetal’”, explica. “E uma questão de consciência e evolução”, diz.

Evolução também é a palavra de ordem do candomblé nos Estados Unidos, atualmente. A religião está começando a se popularizar no país, dentro da comunidade brasileira. Somente no seu centro religioso cerca de 2.500 pessoas buscam ajuda, por ano, sem contar os seguidores da casa, que se reúnem periodicamente.

Entenda a religião

Orixás – Orixás são elementos da natureza, cada orixá representa uma força da natureza. Quando cultuam os orixás, eles estão cultuando as forças elementares oriundas da água, da terra, do ar, do fogo, etc. Essa forças em equilíbrio produzem uma enorme energia (axé), que auxilia as pessoas no dia a dia. Quando adoram deuses, os membros da religião estão adorando as forças da natureza, forças essas pertencentes à criação do grande pai “Ólorum” (Deus supremo). Os filhos de santo aprendem a sentir e a manipular essas energias individualmente através de cada orixá. Os filhos nascidos sobre a influência do orixá detêm mais energia do seu influente do que os filhos de outros orixás. Os orixás são equivalentes africanos aos deuses da mitologia grega. Cada orixá teve sua passagem pela terra e após atos heróicos, ou divinos, partiram da Terra deixando legados de sabedoria e sensibilidade aos seus filhos. Esses poderes são usados para auxiliar as pessoas no seu cotidiano, segundo a teoria da religião.

Candomblé – O Candomblé nasceu, no Brasil, da necessidade dos negros escravos em realizar seus rituais religiosos que no princípio eram proibidos pelos senhores de escravos. E, para burlar essa proibição, os negros faziam seus assentamentos e os escondiam em buracos no chão ou nas paredes. Eles dançavam para os orixás e diziam que estavam cantando e dançando em homenagem a santos católicos. Com o fim da escravidão, o Candomblé foi aceito como religião, com a liberdade de culto garantida pela Constituição Brasileira.

Umbanda – A Umbanda é a mistura do Culto aos Orixás, do Catolicismo e do Kardecismo, resultando numa religião brasileira, hoje em dia exportada para os países vizinhos, principalmente os do Cone Sul, como Argentina, Paraguai e Uruguai, onde existem até confederações de Umbanda.

Egum – É um espírito que já fez a passagem. Não é necessariamente um mau espírito. São espíritos que ajudam o pai de santo a entender as mensagens do além.

Búzios – O jogo de búzios é composto por vários “fetiches” – como cruzes, pedras e búzios – que representam cada orixá. Há o jogo simples, com quatro búzios, e há o jogo completo, com os vários fetiches.

PERFIL

Jordan Leite, 58 anos, carioca, foi empresário artístico por anos. Trabalhou com Vanderléia, Adriana, Sidney Magal, Rosana, Elza Soares e outros. Foi diretor artístico do grupo de dança Oba Oba, onde coordenava 130 artistas e viajava pelo mundo. Dos 18 anos até os 46, trabalhou com artistas e nunca precisou da religião para sobreviver. Resolveu seguir sua crença com mais afinco na década de 90. Sua descoberta no santo aconteceu aos cinco anos, quando percebeu as primeiras manifestações de santo. Foi muitas vezes enviado para o Hospital Psiquiátrico Pinel, no Rio de Janeiro, e tratado com louco. Foi quando a avó, que tinha um centro de umbanda, o levou a um centro. Sua iniciação começou aos 10 anos e aos 15 já estava pronto para a religião. Passou pela fase de rejeição; freqüentou a igreja batista, centros budistas e outras tendências, até resolver assumir o dom.

*Jornalista

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