Jorge Moreira Nunes
O inglês Arthur C. Clarke foi um dos maiores escritores de Ficção Científica do século passado. É dele o conto “A Sentinela”, que inspirou Stanley Kubrick para escrever o roteiro de “2001, Uma Odisseia no Espaço”, talvez o maior filme do gênero até hoje. Clarke escreveu outros clássicos da Ficção Científica, como “Encontro com Rama”, “A Cidade e as Estrelas” e “O Fim da Infância”, este último uma instigante história sobre alienígenas que chegam à Terra para orientar a humanidade durante um período evolutivo crucial iminente, numa espécie de missão educacional.
Chamados de “Senhores Supremos”, os alienígenas estacionaram suas naves sobre as maiores cidades do mundo e entraram em contato com os líderes terrestres, preparando a humanidade para o seu futuro. A tecnologia hiperavançada de que dispunham permitia um domínio total sobre tudo e todos. Acabaram com guerras, controlaram doenças, redistribuíram riquezas e fizeram o possível para civilizar a humanidade, por vezes tendo que aplicar uma lição um pouco mais rigorosa na educação.
Uma dessas lições dolorosas foi durante uma tourada. Os Senhores Supremos avisaram que as touradas deveriam ser abolidas para sempre, por conta da sua crueldade sem sentido. Mas, como crianças teimosas, alguns não deram atenção ao aviso e continuaram com a polêmica tradição de matar touros por esporte. Um dia, numa arena lotada, na mesma hora em que “el matador” enfiou a primeira flecha no lombo do touro todos nas arquibancadas sofreram a mesma dor, aguda e penetrante, que o animal sentiu. Desse dia em diante nunca mais aconteceram touradas no planeta.
Na semana passada, Walter James Palmer, um dentista americano de Minnesota, pagou cerca de 55 mil dólares por um safari na África, com o objetivo único de matar um leão. Matar um leão ou qualquer outro animal que seja somente por esporte já é por si só uma estupidez. Mas, quando o leão caçado é uma celebridade o crime ganha uma dimensão inédita nesses tempos de mídias sociais. Cecil, o leão morto por Palmer e seus cúmplices, era a atração principal de um parque ecológico no Zimbábue, onde além de estar protegido ele era monitorado pela Universidade de Oxford, na Grã-Bretanha, através de uma coleira que continha um GPS localizador. Mas isso não foi impedimento para os assassinos. Eles atraíram Cecil para fora do parque, arrastando a carcaça de um animal morto como isca. Uma vez fora dos limites do parque, Cecil, de 13 anos, foi alvejado por uma flecha de Palmer, que feriu mas não matou. Durante 40 horas Cecil, mesmo ferido, tentou escapar dos caçadores. Perseguido, acabou morto por um tiro, também disparado por Palmer. Os assassinos então decapitaram e esfolaram Cecil, abandonando a carcaça para apodrecer ao sol. Ainda tentaram destruir a coleira com o GPS de monitoramento, sem sucesso, e o crime foi logo descoberto.
Daí para o caso ganhar as mídias sociais e o mundo inteiro foi rápido. Menos de vinte e quatro horas depois os protestos contra o massacre de Cecil obrigaram Palmer a fechar o seu consultório dentário em Minnesota e sumir do mapa. Ameças foram feitas ao dentista e uma petição online, que ganhou mais de 50 mil assinaturas em poucas horas, foi enviada à Casa Branca pedindo a sua extradição para responder pelo crime na África.
Palmer é o que poderia se chamar de cidadão americano comum, com uma profissão próspera, uma família, e uma vida relativamente rotineira, salvo pelo hobby macabro de matar, que ele julga perfeitamente normal. Numa carta de justificativa pelo assassinato de Cecil, ele não se desculpa pelo fato de ter matado um animal de forma tão cruel, mas por não saber que “Cecil era um favorito local”. Matar por hobby, diz Palmer na carta, é uma “atividade que amo e pratico com toda a responsabilidade”.
O dentista de Minnesota não é o único apaixonado por uma atividade que se resume a matar covardemente um animal indefeso. Milhares de pessoas compartilham dessa macabra paixão, que tira a vida de cerca de 600 leões anônimos por ano na África. No Quênia, o último rinoceronte macho branco do mundo é vigiado 24 horas por dia por guardas armados a fim de protegê-lo dos caçadores. Já sem o chifre, retirado para que ele não tivesse valor para os caçadores comerciais, Sudan – esse é o nome do rinoceronte – hoje é cobiçado apenas porque se transformou numa espécie de troféu de caça, e por isso precisa ser protegido permanentemente. O último rinoceronte branco do planeta tem duas companheiras fêmeas, e de seu acasalamento depende a sobrevivência da espécie.
Sem os “Senhores Supremos” da ficção de Clarke, estamos condenados à nossa própria sorte na missão de evoluir como espécie. Entre outras necessidades, ela será inviável sem uma revisão de paixões assassinas como a de Palmer. Sem alguém que nos faça sentir na própria carne a dor que causamos no outro, a matança sem sentido vai continuar até que o último animal sobre a Terra esteja extinto. Incluindo nós mesmos.