Por Franz Valla*
Minha prima, moradora de Massachussets, relata que desde janeiro anda com o sono leve. Diz que anda cabreira com o novo governo, que se sente incomodada com os discursos de ódio aos imigrantes que ouve aqui e ali. Digo a ela que não há do que se preocupar pois, afinal, é casada e bem casada com um autêntico americano, mãe de dois filhotes genuinamente devotos da prática de correr atrás de doces no Halloween e que ainda por cima é cidadã. Mesmo assim se sente amedrontada, sua dupla nacionalidade brasileira é um estigma.
Em tempos remotos, o que nos denunciava eram o sotaque elegante e a predileção por certas grifes fora de moda e mesmo isso não nos tornava diferentes, ao ponto de virar alvo ambulante. Em vinte anos de América, não me recordo de amigos ilegais perdendo o sono, enquanto trabalhavam duro, rumo a obtenção de seus documentos legais. A presença de oficiais de imigração em acidentes de trânsito, churrascos com direito a barraco em família e festas barulhentas que seguiam madrugada adentro só acontecia em piadas espirituosas que fazíamos.
É bem verdade que o governo Obama promoveu deportações em massa, mais que outros governos, mesmo afrouxando as regras para concessão de vistos a níveis nunca visto. Mas nada que fosse tão visível ao ponto de provocar a instabilidade social que agora se vive.
O assunto imigração, um elefante no meio da sala, só era lembrado nas eleições e mesmo assim, como pretexto de debate sobre anistia. Os Democratas abraçam a causa desde os anos 60. Os Republicanos vieram depois, timidamente claro, mas pouco a pouco com igual disposição (até pra conseguir mais eleitores). O problema todo para esses partidos sempre foi conter o entusiamo, o suficiente para não despertar a ira dos fundamentalistas.
Infelizmente, estes últimos ascenderam ao poder com a chegada de Trump e agora vivemos a era da paranóia. Os relatos que chegam até nós, acerca das ações do ICE, agência federal de caça aos imigrantes, são tão preocupantes que chegam a ser surreais, característicos de um Estado totalitário. Nas condições atuais não basta estar legal ou no caminho da legalidade, nem estar completamente assimilado para o convívio cultural e social. Até para quem só vem a passeio, uma inocente visita aos parques da Disney, pode se tornar literalmente numa aventura. O estigma de ser diferente nos cai como uma sentença de condenação e o convite para ir embora, sem justificativa aparente, é tangível. George Orwell e Aldous Huxley não poderiam estar mais orgulhosos de seus dons proféticos.
Neste contexto, em que parece estarmos vivendo um episódio da série “Além da imaginação”, as incertezas da minha prima não parecem tão sem fundamento assim, porque a sociedade que promove a boa convivência com as diferenças é a mesma que agora propõe a ruptura baseado-se nelas e os exageros só estão se avolumando. O momento de lucidez, em meio a esta discussão, veio na voz de um sobrevivente do Holocausto, Bernard Marks, de 87 anos. Durante um fórum sobre imigração em Sacramento, dias atrás, Bernard advertiu os representantes do ICE que lá estavam para o debate, com o aviso que reverberou em toda mídia: “A História não está do seu lado”.