Acabaram-se todos os tons de cinza. Agora é preto ou branco. Ou você está dentro ou está fora. É inútil buscar um ponto de equilíbrio, um tom de cinza na gama dos acontecimentos dos últimos dias no Brasil. Os que ainda tentam contemporizar ficam numa situação ainda pior do que em qualquer um dos lados, posto que terminam odiados pelos dois. Resta saber quem vai ganhar a guerra, e como vai ser tratado o perdedor depois que ela acabar. Aliás, resta saber mesmo como tudo isso vai terminar.
O que começou como um protesto contra o aumento de 20 centavos nas passagens de ônibus em algumas cidades brasileiras acabou ganhando dimensão num formidável movimento popular espalhado por todo país (e também no exterior), que pode ter tido muitas razões para começar, mas que dá poucos sinais de como poderá terminar. O bordão “o gigante adormecido acordou” se espalhou de vez pelas mídias sociais, inebriadas de patriotismo. O que ele vai fazer agora que acordou, ninguém sabe.
Quem talvez tenha melhor explicado a razão dessa revolta súbita, numa hora em que o Brasil experimenta um dos períodos mais prósperos de sua história e se prepara para receber eventos de proporções planetárias, como a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos, foi o jornalista Juan Arias, do diário espanhol “El País”. Favorecido pela boa perspectiva que a distância proporciona, Arias começa um artigo, publicado na segunda-feira (17), confessando a sua perplexidade com a crise num país aparentemente invejado internacionalmente pelo momento positivo porque passa na sua história, com aumento comprovado em diversos indicadores de progresso durante os últimos dez anos. O Brasil está mais rico, diz Arias, a presidente tem a aprovação de 75% da população, o desemprego é perto de zero. Uma nova classe C surgiu resgatada da pobreza, a classe média gasta rios de dinheiro com viagens ao exterior, e ainda assim o povo se revolta. Como é possível? Arias acha que a resposta está, paradoxalmente, justamente nesse resgate da classe mais pobre. Depois que lhe foi restaurada alguma dignidade básica, como ter o que comer, vestir, morar com decência, ter os filhos na escola e poder sentir finalmente um gostinho do Primeiro Mundo, ela precisa de mais. Precisa ganhar dignidade política, porque continua humilhada pela farra oficial às custas da riqueza recém-alcançada pelo país. Precisa se livrar da corrupção institucionalizada que insiste em puxar de volta o Brasil para o buraco de Terceiro Mundo. Necessita apagar a decepção de não ver revertidos para ela os recursos dos muitos impostos que lhe sangram o bolso, e que só servem para sustentar uma rede centenária de propinas, comissões e negociatas em geral. Por tudo isso, é possível ver motivos razoáveis na revolta que toma conta do país enquanto a bola rola na Copa das Confederações. Arias concentra basicamente a sua análise na classe mais pobre em ascensão, mas a hipótese pode incluir também a classe média, cansada de esperar para ver o seu flerte com o Primeiro Mundo refletido numa organização política ainda cheia de cacoetes do Terceiro Mundo.
O outro lado da moeda, entretanto, está na objetividade do movimento. Num extremo das possibilidades, está a simples ocupação pacífica das ruas, com as clássicas passeatas regidas por slogans de protesto se esvaziando pouco a pouco até tudo voltar a ser como sempre foi. No outro extremo, estão as vias de fato, a disputa pelo poder. Nesse caso, a crise vai ganhar proporções bastante sombrias, porque o teatro de combate não vai se limitar apenas aos manifestantes e à polícia. Eles vão ganhar a companhia de todo um elenco de oportunistas políticos. Os reforços virão dos partidários do governo petista, que vão chegar para se opor ao movimento, tendo como coadjuvantes os aproveitadores de ocasião que sempre aparecem nessas circunstâncias. A reação virá da militância mais feroz e radical do PT, e partidos nanicos — à esquerda e à direita — vão se aproveitar do momento para ganhar visibilidade e tumultuar ainda mais a situação. No meio de todo o caos, acabaria prevalecendo quem tem mais poder de fogo e está historicamente acostumado a intervir em momentos como esse: os militares. E eis tudo de volta como era há cinquenta anos.
Encontrar um caminho viável para mudar o país no meio dessas duas possibilidades extremas é o grande desafio do movimento.
Ainda é cedo para saber se o tal “gigante acordado” cantado pelos trovadores das redes sociais tem uma cabeça no lugar. Por enquanto, o que é certo é que o seu despertar não está acontecendo sem dor.