Imigração Notícias

Número de brasileiros detidos na fronteira aumenta em mais de mil por cento desde 2018

Polícia Federal brasileira acusa mineiro de chefiar esquema de tráfico humano que se aproveitou do aumento para prosperar, cobrando 100 mil reais para atravessar migrantes pela fronteira sul dos EUA

Chelbe Willams Moraes assina documento ao ser removido do Paraguai, em junho de 2021. Cortesia da Direccion General De Migraciones Paraguay/Handout via REUTERS/Files

Gabriel Stargardter

BELO HORIZONTE (Reuters) – Brasileiros foram apreendidos em número recorde este ano na fronteira sul, como parte da crise migratória generalizada porque passam os Estados Unidos. A polícia suspeita que a disputa pela custódia de uma criança pode estar relacionada com um dos traficantes humanos responsáveis pela movimentação de brasileiros em direção ao norte do continente.

No começo de junho, a Polícia Federal brasileira prendeu Chelbe Moraes, empresário que teria desaparecido junto com a filha de três anos depois que perdeu a custódia da criança para a ex-companheira. A polícia grampeou os telefones de pessoas relacionadas a Chelbe e desconfiou que ele podeira ser um veterano traficante humano, ou “coiote”.

A Reuters teve acesso ao relatório da polícia datado de 25 de junho e enviado para um juiz federal, pedindo a abertura de inquérito criminal contra Chelbe por tráfico de menores, tráfico humano e formação de quadrilha. A polícia o acusa de cobrar cerca de $20 mil para atravessar brasileiros sem visto pela fronteira entre o México e os Estados Unidos. Segundo a investigação, Chelbe montou uma rede internacional criminosa, envolvendo policiais, funcionários corruptos e famílias residentes nos Estados Unidos.

A reportagem da Reuters também conversou com mais de 20 pessoas com conhecimento do caso, incluindo agentes da polícia, funcionários da imigração, pessoas conectadas com Chelbe, e três indivíduos que alegam terem usado seus serviços. As entrevistas traçam o retrato de um experiente traficante humano, cujos negócios decolaram ultimamente, graças à conturbada situação politica e econômica atual no Brasil.

Chelbe, natural de Minas Gerais, diz que é inocente das acusações, e explicou à Reuters que presta assessoria legal para pessoas de Minas que buscam asilo nos Estados Unidos. Disse que já ajudou mais de 200 pessoas em 20 anos de carreira, cobrando até 100 mil reais ($18 mil) pelo serviço.

“Minha assessoria é cara porque eu conheço as leis americanas”, disse Chelbe.

Nos onze primeiros meses do ano fiscal de 2021, 46,2 mil brasileiros foram detidos na fronteira sul, de acordo com dados do U.S. Customs and Border Protection (CBP), comparados como os 17,8 mil em todo o ano de 2019. Apesar do número ser apenas uma fração dos mais de 550 mil mexicanos detidos até agora este ano, os brasileiros ocupam o sexto lugar em nacionalidades apreendidas na fronteira em 2021.

“Tivemos ondas de brasileiros no passado, mas nada assim”, disse Ramon Romo, chefe do setor de tráfico humano do Homeland Security, braço investigativo do U.S. Immigration and Customs Enforcement (USCIS).

Os promotores acusam Chelbe, de 60 anos, de tráfico de menores por ter fugido para o Paraguai com a filha pequena. Ele alegou inocência, e disse que tratava-se de uma viagem de negócios agendada. Já de volta ao Brasil, Chelbe aguarda o julgamento em liberdade. Nenhuma acusação formal foi feita ainda em conexão com a suposta operação de tráfico humano; a promotoria deu mais tempo à polícia para analisar mensagens em computadores, celulares e documentos apreendidos pela investigação.

Duas pessoas familiares com o suposto esquema – um ex-cliente e um ex-colaborador – disseram à Reuters que Chelbe treinava os clientes para agirem como turistas na chegada ao México, por vezes conseguindo entrada no país com a ajuda de funcionários da imigração mexicana subornados.

Os brasileiros seguiriam então para o norte, onde atravessariam a fronteira com a ajuda de coiotes mexicanos contratados, e buscariam asilo usando documentos falsos e histórias fictícias elaboradas por Chelbe, disseram as fontes.

O National Migration Institute mexicano, responsável pela agência federal imigratória no país, não respondeu ao pedido de comentário feito pela reportagem.

Pessoas que têm como provar que estão sendo perseguidas em seu país de origem por questões raciais, religiosas, nacionalidade, grupo social ou opinião política podem qualificar-se para um pedido de asilo nos Estados Unidos. A sobrecarga e o atraso nas cortes imigratórias americanas fazem com que as pessoas que conseguem entrar permaneçam nos EUA aguardando o processamento do caso.

Chelbe disse que as pessoas que afirmam que ele lidera uma operação de tráfico foram “induzidas” pela polícia, ou têm inveja do seu sucesso.

Mas ele reconhece que beneficiou-se dos problemas no país.: “Quanto pior o governo aqui, melhor para mim”, disse.

‘SEM PRECEDENTES’

A migração brasileira em direção aos Estados Unidos começou a disparar a partir de 2018, quando o presidente de extrema-direita, Jair Bolsonaro, foi eleito. Naquele ano, pouco mais de 1,5 mil brasileiros foram detidos na fronteira, número que aumentou em mais de mil por cento no ano fiscal seguinte.

O país tem lidado com diversas crises sob Bolsonaro. Mais de 600 mil pessoas morreram de covid-19, a segunda maior taxa de mortalidade do mundo, depois dos EUA. O desemprego chega a 14%, e a inflação anual chegou a dois dígitos, e a pobreza aumentou.

“O brasileiro médio está desiludido com tudo”, disse Daniel Fantini, o delegado responsável pela investigação do caso de Chelbe.

O governo Bolsonaro não respondeu aos pedidos de comentário da reportagem.

Para entrar nos Estados Unidos os brasileiros precisam de um visto de turista. O processo tem ficado mais difícil por causa da covid-19 e o grande número de pessoas que ultrapassam o tempo de permanência permitido pelo visto, disseram três funcionários americanos à Reuters.

Muitos assim recorrem aos coiotes, segundo os migrantes, famílias, policiais e autoridades que conversaram com a Reuters. Lenilda dos Santos, enfermeira em Rondônia, morreu de sede em setembro no estado de New Mexico depois de atravessar a fronteira. Seu irmão, Leci Pereira, disse à Reuters que ela concordou em pagar $25 mil para um traficante humano, deixando sua casa como garantia. O suposto traficante, que atende pelo apelido de “Piskuila”, não respondeu aos pedidos da reportagem para comentar.

Na Califórnia, agentes do CBP estão acostumados com o espanhol, língua oficial no México e na maioria da América Latina. Mas estão tendo dificuldades com o aumento “sem precedentes” no número de falantes de português detidos na fronteira.

Até agora, os esforços diplomáticos para sustar o fluxo não têm surtido efeito.

Brasileiros não precisam de visto para entrar no México, o que facilita para os traficantes a tentativa de atravessá-los pela fronteira com os EUA. O governo Biden quer que o México imponha a necessidade de visto para os brasileiros, a fim de dificultar o processo, segundo disse à Reuters uma fonte familiar com o assunto. As conversas começaram em julho, mas o México tem resistido à ideia, citando o lucrativo turismo com brasileiros e uma possível retaliação do governo Bolsonaro, disse uma das fontes.

O U.S. Department of State não quis comentar, alegando “conversas diplomáticas pendentes”.

Os ministros das Relações Exteriores de México e Brasil não responderam ao pedido de comentário.

INVESTIGAÇÃO EM CURSO

Depois que Chelbe saiu do país com sua filha, a Policia Federal começou a interrogar seus supostos associados.

Geisiane Batista, apontada pelas autoridades como responsável pelas finanças da operação de tráfico, ajudava Chelbe a tocar uma fábrica de lingerie em Minas Gerais, de acordo com o depoimento à polícia ao qual a Reuters teve acesso. Ela disse à policia que futuros migrantes, todos sem visto, frequentavam a fábrica para falar com Chelbe e arranjar a passagem.

Chelbe nega as declarações de Geisiane, e Batista não pôde ser localizada para comentar.

José Martins trabalhou para Chelbe como motorista, levando migrantes de Minas Gerais para Rio de Janeiro e São Paulo a fim de embarcarem nos voos para o México, segundo seu depoimento. Ele disse que Chelbe cobrava 100 mil reais para “colocar alguém nos Estados Unidos”, e oferecia uma comissão de mil reais ($181) para cada novo cliente que ele trouxesse.

Entre os migrantes transportados estava Ismael da Silva e esposa. Guarda de segurança desempregado, Ismael declarou em depoimento que vendeu carro, móveis e equipamentos para financiar a jornada, que custou $17 mil. O casal não conseguiu. As autoridades mexicanas negaram a entrada no país na chegada em Cancun em maio passado, Ismael contou à policia. Contactado pela Reuters, Ismael não quis comentar.

Outros tiveram mais sorte. O motorista José Martins contou à polícia que o casal Silva fazia parte de um grupo de 12 brasileiros, seis dois quais conseguiram entrar nos Estados Unidos. Martins não quis comentar.

Escutas telefônicas sugerem que Chelbe recorre a alguns de seus parentes nos EUA, incluindo uma filha, Janaina Moraes, para ajudar na movimentação dos migrantes, segundo o relatório da polícia. Janaína, que mora perto de Boston, disse à Reuters que de vez em quando usava o telefone para fazer reservas em hoteis para os clientes de seu pai, ou comprava comida para eles, mas negou que trabalhasse para Chelbe. Não há nenhuma acusação da policia contra Janaína.

Um porta-voz do U.S. Department of Homeland Security não quis comentar se o que ela disse faz parte de alguma investigação em curso.

FAMÍLIAS FALSAS

O brasileiro Bruno Lube, de 41 anos, disse à Reuters que contratou os serviços de Chelbe em 2016, mas foi detido pelos agentes americanos ao escalar o muro da fronteira perto de El Paso, junto com um coiote mexicano. Ele disse que passou quase cinco meses preso nos EUA antes de ser deportado para o Brasil, onde denunciou Chelbe à Polícia Federal.

Um porta-voz da PF brasileira confirmou a denúncia de Bruno contra Chelbe em 2017, e disse que ainda está sob investigação.

Chelbe negou as acusações de Bruno, e disse que não o conhece. O CBP não quis comentar sobre a suposta prisão de Bruno.

Centro-americanos e mexicanos acompanhados de crianças são regularmente removidos para o México ao chegarem na fronteira americana, como parte das medidas impostas no começo da pandemia. Em contrapartida, quase todos os brasileiros acompanhados de menores que chegam à fronteira sul buscando asilo são admitidos para aguardar as audiências em solo americano.

Até agosto deste ano fiscal, 99,2% das famílias brasileiras oram autorizadas a entrar, segundo números do CBP, comparados com 15%  de famílias mexicanas, 57% das gutemaltecas e 66% das hondurenhas. Quando as medidas entraram em vigor, o México disse que somente aceitaria mexicanos e centro-americanos removidos dos EUA, mas desde então tem aceitado outras nacionalidades.

Para ludibriar o sistema, disse uma fonte, Chelbe criava “famílias falsas”com adultos e menores sem parentesco, provendo-os com documentos falsos e histórias fictícias de violência doméstica e ameaças de gangues para justificar o pedido de asilo. Chelbe negou as acusações, afirmando que somente aconselhava famílias de boa fé.

(Reportagem de Gabriel Stargardter em Belo Horizonte, Brasil; reportagem adicional de Mica Rosenberg em New York City, Daniela Desantis em Asunção, e Dave Graham e Frank Jack Daniel na Cidade Mexico; edição de Marla Dickerson e Jorge Nunes, para o AcheiUSA)

Compartilhar Post:

Baixe nosso aplicativo