Histórico

Prêmio AcheiUSA de Literatura

Conto vencedor, de Denise G. Monteiro

Acrux

Denise G. Monteiro

Cheguei bem. Bom, mais ou menos. Contei as sardas entre a barba rala do meu rosto por mais de meia hora no banheiro do Pan Am. Tudo encolheu de repente. Um gosto de sabão. Cheiro a plástico queimado. Como se a mão estivesse coberta de sal grosso molhado. Foi assim. Me sentia preso dentro de um vácuo. Algo como poeira em aspirador. Pensava naquele prédio daquele gorila e em ursos se espreguiçando no teto da Casa Branca. E em bangue-bangue. Querida Solange, ao chegar, assim como você me pediu, procurei o Cruzeiro do Sul. E sim, você tinha razão: a Acrux, a Mimosa, a Gacrux, a Pálida e a Intrometida desapareceram.

***

Faz três dias que espero a Dona Marina. Me falaram que ela foi passear num estado perto do mar do Alaska, onde o primo dela pesca polvos, salmão, sardinhas e um tipo de baleia pequena. Algo assim. Estou ficando na casa da vizinha dela, cujo marido trabalha perto do porto do Detroit River. Ela esqueceu de deixar a chave e não queremos arrombar a porta. Me deixou um envelope com alguns dólares, um presentinho e um bilhete de boas-vindas. Sim, a porta está trancada, mas não foi de propósito. Lembra daqueles cortes dos jornais da sua patroa que guardei? Não me levaram a lugar nenhum… Ninguém atende o telefone ou talvez seja meu mau inglês. As pessoas aqui não gostam muito de conversa. Nessa ‘Motor City’ da América só se fala em carros. Sabia que foi um tal de francês de sobrenome Cadillac que fundou essa cidade? Eis aí o nome daquele carrão que sonhávamos em ganhar numa rifa do seu primo da Petrobras. Mas as coisas aqui não me fazem pensar nos cadilaques eldorados daqueles filmes da locadora da rua da padaria. Não. Os bairros aqui escorrem esgoto por toda parte. Uma água desbotada. O mato é escasso. A lua é fria. De verde e amarelo nem se sabe. Jogam jogos com uma bola pontuda ou com um taco de mão com homens que cospem e cospem. Tudo é tão alto. E as pessoas quase gritam. Por todo lado cheira a gás. Nunca nem vi um bujão. Tem tomadas por todas partes das casas, até nas ruas. E muitas coisas que funcionam com pilhas. Até caneta com pilha já vi, como uma lanterninha pra escrever na escuridão. E há caixinhas enormes pra apontar lápis.Vou levar um apontador desses pra você. Claro, aqueles chicletes fininhos amarelinhos também. O que mais você vai querer?

***

Falei com minha tia ontem. Me disse que te viu na quermesse vendendo quentão no domingo. Liguei duas vezes na casa da tua vizinha, ela foi te procurar e não te achou. Quero tanto falar com você. Você nem imagina o que comi na semana passada: bisão! Isso mesmo, bife de búfalo. Uma carne meia estranha, mas gostei… Pelo menos, tem um gosto melhor do que as coisas enlatadas que comi por mais de uma semana enquanto esperava que Dona Marina voltasse de Seattle. Vou te mandar um cartão postal que ela me trouxe de lá. Tem um lugar chamado Space Needle que parece coisa do futuro. Me fez lembrar do Obelisco de São Paulo. Bom, na verdade esse parece com o monumento de Washington na capital desse país. Prédios-futuro estão na nossa capital, não é mesmo? Falando nisso, minha tia me disse que também te viu na feira de terça, comprando mexericas, e que você falou pra ela que já me escreveu duas vezes. Talvez ainda não colocou-as no correio. Vou tentar te ligar amanhã.

***

Solange, de novo: feliz aniversário! Que pena que perdi a tua festa na chácara da Dona Tina. Mas me alegrou escutar tua voz no meio da palhaçada. Menina, ninguém me faz rir tanto! Você é demais, sabia? Espero que o perfume e as fotos que te mandei cheguem logo. E se o frasco quebrar, vou chegar entalado na neve, todo cheirosinho. Como eu te disse, eu acho que você deve fazer aquele curso de Saúde Pública no SESI sim. A minha avó conhece um pessoal de um posto de saúde lá na Vila Mariana. Eles podem conseguir um trabalho pra você.

***

Solange querida, decidi ficar um pouco mais. Eu sei, eu sei. Prometi que eu ia voltar antes do Natal, pra gente ir lá pra Cabo Frio, visitar sua prima Cleuza e jogar bumerangue na Praia do Forte. Não vai dar. O verão daqui acabou e com ele aquele meu trabalhinho de cortar grama nos jardins das casas chiques sem portões de Michigan. Me disseram que no outono as árvores perdem suas folhas. Ficam nuas. Só galhos e caules. Um processo chamado caducifólia. Mas antes disso fica tudo laranja. Imagina só se o Ibirapuera ficasse todo alaranjado? Pois é. Quero ver isso aqui. O amigo da Dona Marina, o que me conseguiu o trabalho de cortar grama, me disse que no inverno vamos limpar neve e que me vai pagar o dobro. Também me vai conseguir aulas grátis de inglês numa biblioteca aqui perto. Você entende, né?

***

Fico olhando comboios a caminho do aeroporto de Wayne County e me faz lembrar do asfalto perto de Cumbica. E do nosso trajeto até Guarulhos… Já faz tanto tempo…

***

Oi Solange, tudo bem? Ouvi falar que o nome do dinheiro daí mudou de novo. Lembra daquela nota verde de 200 cruzeiros onde você escreveu aquele poeminha na cara da princesa Isabel e que ia transformar numa música depois que aprendesse tocar piano? Eu ainda tenho ela comigo na minha carteira. Trouxe ela pra me dar sorte. ‘Lança tua flecha e cavalgue por prados e mares. Sete voos. Sete quedas. Um transcurso de ida e volta por sete mapas. Pra micrôlandia da Disneylândia eu quero fugir… ‘ Você escreveu isso depois de ter lido aquele romance francês, não foi? Foi sim. Eu lembro que na capa tinha um cavalo cinza alado e um arco com flechas de pontas de prata. Falando nisso, o que você fez com as minhas coisas? Continuam guardadas na última gaveta da cômoda da tua sala? E aquele porta-retratos que meu avô comprou em Poços de Caldas, com minha foto escolhendo feijão do lado da minha tia Ilda? Você deu de presente pra minha professora de educação física, conforme eu te pedi? Ela era de Nova Aurora, um lugar perto de umas fontes e nascentes famosas. O avô dela era um ex-garimpeiro, conhecido da minha tia. Nadei muito com a sobrinha dela no Rio das Antas, quando passei as férias de janeiro lá. Aqui tem um rio que me faz lembrar daquele… fica perto da enorme ponte de Mackinac, que liga a Península Superior e a Península Inferior. Te disse dos Grandes Lagos, lembra? Te vou mandar fotos. Parecem o mar.

***

Será difícil conseguir outro visto pra voltar pra cá no futuro. Acho que vou ficar mais um ano. Talvez até faça um curso de agronomia de dois anos no Community College daqui. Quero abrir uma empresa de exportação de fertilizantes quando volte para aí. Minha tia Telma (aquela que morou por um tempo na Itália) veio morar comigo agora. Continuamos ainda na casa da Dona Marina, mas depois que uma amiga costureira dela de Nova Friburgo vir em dezembro, vamos tentar alugar um ‘basement’ pra nós três. Estou agora trabalhando de pintor com o sobrinho da vizinha da Dona Marina. Ele é da Bahia. Me fala muito de lá. Ele é estudado, tem diploma de advogado e foi até vereador de uma cidadezinha perto de Camaçari. Mas as coisas estão difícil no nordeste. Veio pra cá faz dois anos, pra ajuntar um pouco de dinheiro, pra tentar pagar a hipoteca do casarão que morava, antes de tentar outra eleição. Ele tá voltando em outubro e me vai deixar encarregado de várias obras. Também me ensinou como fazer o isolamento de paredes. Como te comentei no outro dia, as paredes daqui são muito finas e cheia de algo tipo isopor. Pegam fogo muito fácil… Bom, já temos um lugar pra ficar em Salvador e em Feira de Santana. Quando eu voltar, vou comprar sua passagem e vamos pra lá ficar no mínimo duas semanas. Podemos também visitar Alagoas como você sempre sonhou. Que tal?

***

Estou agora em Helena, capital das Montanhas Rochosas e das Grandes Planícies. Dona Marina me disse que um dia me vai levar pra passear lá em Alberta, no Parque Nacional Banff. Tem um tal de Vale dos Dez Picos; cada monte com seu nome oficial e nomes nativos: Monte Fay, Monte Little, Monte Tuzo, Montanha Neptuak, Sapta, Shagowa, Shakhnowa, Wenkchemna. Lembra do Pico do Jaraguá lá na Serra da Cantareira perto da casa da tua madrinha? Pois é, esses picos são três vezes mais altos que ele. Lembra quanta sede passamos no caminho de volta pela Trilha do Pai Zé? Sua madrinha não queria que andássemos na escuridão perto da rodovia Anhanguera e tinha medo que nos perdêssemos pela aldeia do Jaraguá-Itu. Queríamos tanto encontrá-la, não é mesmo? Diziam que na Parte de Baixo, o cacique, o grande “senhor do vale”, escondia ouro achado do tempo do Afonso Sardinha, e tínhamos até feito um mapa, com várias estrelinhas por toda a pequena Trilha do Silêncio. Pensávamos também que por detrás da pequena cachoeirinha da Trilha da Bica, haveria um túnel que nos levaria direto a um jardim na casa da Cacique Jandira… O único que conseguimos foi aquele cheiro de querosene que tivemos que esfregar nos nossos braços e nas nossas pernas… Tanto que te falei que um buquê de enfeite daquela planta vermelha que achamos perto dos degraus de madeira não valeria a pena… Mas você insistiu. Aquela coceira de três dias e três noites só parou por completo quando comecei a pesquisar as classificações científicas da flora da Mata Atlântica pra um trabalho de grupo da 7ª série: sufixos dos taxa, dependência do reino-filo-classe: ‘A embaúba, árvore-da-preguiça, é do gênero Cecropia, uma…’ Tirei um A. Voltamos depois naquele mato, à procura das folhas de Assa-Peixe, pois ninguém acreditou que tinha planta que cheirava a bonito… Nossa, que sono Solange. Já são uma da manhã aqui, horário Rock Mountain… Você aí dormindo no horário Terra da Garoa…

***

Amiga, quero tanto que você venha me visitar… Não daria pra você tentar de novo o visto? E se você pedisse que seu pai colocasse a escritura do sítio de Campinas do seu avô doente no seu nome? Acho que ajudaria. Eu posso conseguir um trabalho pra você aqui, você gosta tanto de crianças e parece que de repente toda mulherada dessa cidade engravidou. Só vejo barrigas. Esse novo presidente eleito tá mandando brasa, as famílias daqui tão crescendo que nem aqueles coelhos brancos do seu sítio. A construção vai bem também. Já aprendi a remodelar até prédios antigos. No meu novo serviço, conheci outros dois brasileiros que vão trazer vários primos pra cá. Alguns até já compraram casa aqui. Eu estou pensando em comprar uma… Vem sim Solange. Eu te levo lá pra Orlando, que nem vou escreveu na cara da princesa Isabel.

***

Solange… Finalmente achei todas as velhas cartas que te escrevi… Guardava pra poder entregá-las pessoalmente. Iríamos lê-las juntos. Soube do seu enterro. Vou rasgá-las.


Denise G. MonteiroA Ganhadora

A brasileira Denise G. Monteiro, de 38 anos, veio para os Estados Unidos há 20 anos e inscreveu seu texto no IV Prêmio AcheiUSA de Literatura na última hora. Segundo ela, escreveu às pressas seguindo apoio do amigo Domicio Coutinho, do centro brasileiro em Nova York (Brazilian Endowment for the Arts). “Ele me incentivou tanto, quase exigiu que eu participasse”, lembra a brasileira, que faz mestrado em Creative Writing na New York University.

Atualmente, ela faz traduções literárias em três línguas: português, inglês e espanhol. Denise revela que esse foi o primeiro conto de sua autoria em seu idioma natal. A inspiração, conta, veio através de histórias que ouvia da família. Na época em que veio morar nos Estados Unidos, as pessoas ainda costumavam escrever cartas. “Sou imigrante e ainda lembro daquela época sem Internet. Minha intenção era mostrar um pouco dessa sensação de estar longe e com pouca informação”, resume. Denise garante que o prêmio vai incentivá-la a continuar investindo na literatura em português.


Nas próximas edições, o Jornal AcheiUSA vai publicar os contos colocados em segundo ( “Mas é Carnaval”, de Tomás Creus) e terceiro lugares (“Nem Todos os Sorrisos Dizem Sim”, de Lúcia Santos).

Compartilhar Post:

Baixe nosso aplicativo