Uma história de dificuldades, transtornos, problemas emocionais, financeiros e de saúde, em busca do suposto “american dream”
Por Iara Carnauba
Essa é a aventura de uma mulher que enfrentou a dor de deixar a filha pequena com a avó, em uma cidade pequena de Minas Gerais, para tentar proporcionar-lhes melhores condições de vida nos Estados Unidos. A aventura começou em março de 2003 e durou sete meses e quatro tentativas de entrar nos Estados Unidos, passando por Cuba, Bahamas, Panamá e México. Persistência, medo, corrupção, pressão psicológica, fome, sede, descaso, prisão e deportação fazem parte desta história.
“Deu certo com a minha prima” – O pacote de US$9.000 incluiria transporte, alimentação, estadia e segurança. Os “clientes” embarcariam em São Paulo acompanhados por um membro da organização. Ao chegar em Cuba seriam recebidos por uma outra pessoa para acompanhá-los até um hotel luxuoso onde ficariam hospedados por três dias. Depois sairiam em um monomotor rumo às Bahamas. Lá, ficariam por mais uns dias esperando o sinal para viajar de barco até uma pequena ilha onde outra pessoa os aguardaria para completar a travessia em um outro barco. A entrada seria pela praia de Delray ou Deerfield, de acordo com a facilidade do dia. Mas com a nossa entrevistada E.F. não foi assim.
Chegando em Cuba foi levada para o hotel, como combinado. No dia seguinte foi ao aeroporto acompanhando um dos membros da organização para buscar a pessoa que tratara todo o esquema da travessia, que estava vindo do Brasil. De lá, foram direto para uma casa onde estavam abrigados cerca de 20 brasileiros “Foi quando me dei conta de que havia algo errado”, contou E.F. Na casa, as pessoas reclamavam do tempo de espera, que já passava de um mês. Abatidos, preocupados com as famílias no Brasil, muitas sem recursos, problemas de saúde, depressão e exaustos pela espera angustiante e perigosa. A imigração de Cuba controla rigidamente os hotéis e casas com permissão para hospedar turistas, por isso eles fugiam dos oficiais em perseguições que duravam dias e noites. Com E.F. não foi diferente. Durante um mês, experimentou tudo aquilo que ouviu do grupo que encontrara na casa.
Hospedada em uma casa, conheceu cubanos dispostos a ajudar: famílias, médicos e mais brasileiros que chegavam sem saber o que os esperava. Falsas promessas de que o dia da travessia estava próximo, de que o barco estava com problemas, até que, passado um mês, o dia chegou: “Pegamos o teco-teco e fomos para as Bahamas. Descemos no aeroporto mais lindo, muito fino, com música e tudo”, conta E.F. Entretanto, já na imigração foram detidos e informados de que seriam deportados. Praticamente sem dinheiro, esperando a deportação, tiveram de fazer uma “vaquinha” para comprar água e alguma coisa para comer. “Deu certo com a minha prima. Em uma semana ela estava aqui. Foi tudo perfeito!”, comentou E. F.
Segunda tentativa: Espera, chantagem e greve de fome – Não chegou a completar um mês no Brasil e nossa entrevistada soube que a situação havia melhorado em Cuba e que muitos conseguiram atravessar. Partiu novamente, desta vez com uma amiga, para Cuba. Chegando lá, voltou para o esquema das casas que hospedavam até 25 pessoas em apenas dois cômodos, conhecia as pessoas e se sentia mais segura do que na primeira vez. Embora não tenha ficado na mesma casa que sua amiga, não se sentia tão desamparada. Sabia perfeitamente como driblar as perseguições da imigração e estava sempre pronta para fugir.
Neste período, E.F enfrentou problemas de saúde, dores de cabeça fortíssimas, atendida em diferentes hospitais públicos de Cuba e até em clínicas particulares – onde não é permitida a entrada de cubanos – para fazer exames mais aprofundados. Chegou a ser diagnosticada: “Disseram que eu tinha um tumor na cabeça”. Decidiu não dar importância e fazer mais exames para confirmar o diagnóstico. Muitos acreditavam que fosse emocional e essa era a sua esperança.
Passados outros trinta dias, os oficiais de imigração apreenderam três passaportes. O de E. F. estava entre eles. Os oficiais queriam dinheiro. Ameaçavam prendê-los e faziam pressão para assustá-los. Muitos corriam para um parque durante o dia e esperavam um sinal para voltarem para as casas. Mas todo o esquema não foi suficiente, eles foram presos. O cenário bem comum para quem já viu, mesmo que pela televisão, os presídios brasileiros. Muita sujeira e descaso. Não podia ver ninguém, mas recebia cigarros que os amigos cubanos levavam. A imigração queria nomes, mas nada conseguiu com a pressão que fez sobre o grupo brasileiro. Ela precisava sair dali. Não tinha previsão de deportação. Começou, em uma tentativa desesperada, a fazer greve de fome. Não comia nada. Só bebia água e fumava. Os oficiais temendo o pior a enviaram para o Panamá, onde foi direto para a imigração e deportada outra vez. Sua estratégia deu certo.
Chegando ao Brasil, encontrou sua amiga, que conseguiu sua passagem e voltou de Cuba. Ainda muito fraca e com dores de cabeça foi a outros médicos que não detectaram nenhum tumor em sua cabeça.
Sua amiga já teria outra forma de chegar aos Estados Unidos. Desta vez pelo México. A travessia duraria pouco mais de uma semana e seria totalmente segura. Ao receber o telefonema da amiga dizendo que tudo correra bem, E. F saiu em sua terceira tentativa.
Deserto, frio, traição e medo, muito medo – Sua passagem pela Cidade do México foi muito rápida. Seguiu para Mexicali, Baja Califórnia. Instruída sobre como agir, correr e nadar não teve que esperar muito pelo sinal para atravessar. Em meio à correria, perseguição e tudo aquilo que é familiar para muitos, conheceu mulheres e homens muito sofridos. Ouviu histórias de estupros, espancamentos e roubos. Mas nada disso aconteceu com ela: “Posso dizer que não sofri. Fui muito sortuda”. Já na última etapa da travessia, no rio, lutando contra a correnteza, foram surpreendidos pela imigração americana. Mais uma vez, E.F. é presa, agora, em San Diego, na Califórnia, onde descobriu, mais tarde, que o grupo foi dedurado pelo próprio coiote para atrair a atenção da guarda costeira enquanto outro grupo maior atravessava o rio mais adiante. Esperou para ser levada ao presídio por dois dias com a roupa molhada e suja de lama.
Após ouvir depoimentos de pessoas que aguardavam solução para o seu caso há mais de cinco meses, resolveu pedir deportação voluntária. Aguardando o final de mais um pesadelo, começou a trabalhar no presídio ganhando um dólar por dia. Fez amizades e ouviu mais histórias. As presidiárias só saíam durante o dia, mas nunca podiam ver à noite: “Pedimos para limpar o pátio à noite e a vigia deixou. Era uma noite de lua cheia. Percebi o quanto a vida nos oferece sem nos darmos conta”, recorda, emocionada. Com o dinheiro que ganhava podia comprar cartão de telefone para se comunicar com sua mãe e sua filha. Pelos seus cálculos, chegaria ao Brasil no dia do aniversário da sua filha. E esperou pacientemente, com a ajuda das companheiras e dos cultos. “Procurávamos nos ajudar. Quando uma estava muito triste a outra fazia gracinhas. Assim, encontrei força para superar todos os problemas. Cantávamos e sempre nos mandavam calar a boca. Acho que não entendiam como podíamos estar cantarolando na prisão”, conta, risonha. Tudo correu como planejado e ela chegou ao Brasil a tempo de ajudar a organizar a festinha de sua filha.
Última tentativa. Agora ou nunca – Conversou com a sua mãe e chegaram à conclusão de que aquela seria a última vez em que tentaria entrar nos Estados Unidos. Partiu novamente rumo à Cidade do México. Ao chegar, foi levada para um hotel. Integrava um grupo bem menor do que ela estava acostumada, e com atenção e cuidados bem diferentes em relação às tentativas anteriores. Levou apenas um susto: “Estava saindo quando as luzes se apagaram e dois homens me empurraram para dentro do quarto. Eles sabiam meu nome e o das outras pessoas e queriam a primeira parte do dinheiro. Em seguida, o coiote os acalmou e me chamou para pagá-los. Eu levava grande parte do dinheiro do grupo. Mas tudo ficou bem”. Seguiram para Tijuana onde a estratégia seria mais rápida e segura. Com todos os detalhes acordados, como códigos e tempo de locomoção, aguardavam a hora certa prontos para partir. Receberiam um telefonema dizendo quantas roupas poderiam ser lavadas e neste momento teriam de sair rapidamente de moto. O tempo era cronometrado. Exatos cinco minutos. Qualquer falha ou atraso botaria tudo a perder. Desta vez, deu certo. Em poucos minutos, E. F estava em terra americana, sem correr pelo deserto, nadar, passar fome ou frio.
E.F. gastou US$10.000 pela travessia. Nas tentativas anteriores o coiote tentou receber o dinheiro sem sucesso, pois o acordo era pagar quando chegassem aos Estados Unidos.
Nossa entrevistada se lembra da beleza de Santa Monica e Los Angeles e da emoção de conseguir, depois de tantas tentativas, chegar até aqui. Promete, porém, um dia voltar sem pressa e sem medo de ser pega.