A Jovem Guarda faz 50 anos em 2015. Sou contemporâneo dela, foi uma descoberta em paralelo com o rock dos Beatles e dos Rolling Stones. Outro dia, escutando um CD que montei com uma seleção de hits da época, fiquei pensando na ingenuidade das letras e como elas seriam ouvidas pela juventude atual. Qualquer jovem que tentar ganhar uma garota hoje com xavecadas do tipo “Você é o tijolinho que faltava na minha construção” provavelmente leva um tijolo na cara, se houver algum. E se ele ainda for alegar que seu coração não é de papel, vai ser retalhado em mil pedacinhos, isso se não o mandarem se limpar com ele.
Num sucesso da dupla Leno e Lilian chamado Devolva-me, o ex pede que ela rasgue as cartas que ele lhe escreveu e que devolva o retrato dele. Hoje a letra teria que dizer que ele ia bloqueá-la no Facebook, no Instagram e no Whatsapp e pedir que apagasse todas as fotos nas redes sociais.
Fiz uma pesquisa pelos 30 anos do primeiro Rock in Rio e num dos vídeos estava Erasmo Carlos cantando Gatinha Manhosa diante de uma horda de headbangers fãs de Iron Maiden, Ozzy Osbourne e AC DC. Só podia dar no que deu: vaias estrondosas. Até para as jovens de hoje uma letra em que o cara grita com a namorada, ela faz beicinho e chora baixinho e diz que a emoção dói seu coração, provoca risos. Ela mandava o machão praquele lugar.
A ingenuidade dos primórdios do rock não era só aqui. Os Beatles, pontas de lança da revolução musical dos anos 60, também esbanjaram ingenuidade em seus primeiros sucessos. Love Me Do dizia simplesmente “me ame, você sabe que eu te amo e sempre serei fiel.” Do You Want to Know a Secret? dizia que o segredo era que ele estava apaixonado por ela. Please Please Me, o primeiro a chegar ao topo da parada inglesa, provocou suspeitas na BBC sobre o verso “please please me like I please you” e quase foi banida: viram nesse please uma insinuação de sexo oral (não há mente mais fértil do que a dos conservadores).
O mesmo acontecia com outras bandas da invasão inglesa que tomou o mundo em 64. Uma exceção foi The Animals, que estrearam com a sombria The House of the Rising Sun, uma casa que era a ruína de garotos pobres, o da música tinha uma mãe costureira e um pai alcoólatra.
Quando a Geração 80 do Rock Brasil explodiu em 1982 também começou com letras ingênuas que falavam de azaração, como Você Não Soube Me Amar, da Blitz; Vital e Sua Moto, dos Paralamas do Sucesso e Pintura Íntima, do Kid Abelha e os Abóboras Selvagens. As únicas exceções foram o Barão Vermelho, que contava com um letrista de talento excepcional, Cazuza, e Lobão, aliado a um movimento de jovens poetas chamado Nuvem Cigana.
Mas essa geração soube dar um salto de qualidade que faltou à Jovem Guarda com uma direção musical própria e letras de qualidade e politizadas como Geração Coca-Cola. O grupo paulista Titãs fez de seu álbum Cabeça Dinossauro o manifesto político de sua geração, com a demolição das instituições em canções como Igreja, Polícia, Família, Estado Violência, Porrada, Dívidas.
Outra banda de Brasilia, a Plebe Rude, egressa do movimento punk como a Legião Urbana, igualmente lançou protestos contra a censura e a corrupção em canções como Até Quando Esperar, Proteção, Censura. A Jovem Guarda não se meteu em política, os protestos na época ficaram a cargo da chamada MPB, o bloco de músicos egressos da bossa nova e das universidades, politizados e de esquerda, que viam com desdém a Jovem Guarda, tachada de alienada e linha auxiliar da ditadura. Chegaram a fazer passeata contra as guitarras e o rock, que seriam instrumentos do imperialismo para alienar a juventude brasileira. Isso em meados da década de 60. Na década de 70, a MPB adoptou o instrumental do rock, incluindo Elis Regina, uma das líderes do protesto. Vitória do imperialismo?
Por volta de 1968 a Jovem Guarda entrou em crise. Seus músicos não souberam dar o salto qualitativo que o rock inglês e o americano deram em 1966-67. O Sgt. Pepper’s do Rock Brasil veio de outro movimento, o Tropicalismo, de onde emergiu a mais importante banda de rock brasileira de todos os tempos, Os Mutantes. Ainda que também não entrassem na seara política, os Mutantes – Arnaldo e Sergio Batista e Rita Lee – deram uma guinada estética no rock nacional que não teve a consequência esperada.
Nos anos 70, em vez de partir dos parâmetros apresentados pelos Mutantes, o rock brasileiro partiu para o progressivo com sucesso limitado e estanque. Sem Arnaldo e Rita, até Os Mutantes foram na onda progressiva. Rita Lee teve um sucesso mais constante nesta década, com pouco destaque para outras formações, como O Terço. E ainda Raul Seixas, em uma sequência inicial de grandes discos e menos inspirado mais pro final da década e Alceu Valença, que apesar de não se rotular de rock, fez uma inteligente mistura de rock e a música tradicional do Nordeste ao lado de seu guitarrista e produtor Paulo Rafael.
Depois da brilhante geração dos anos 80, o rock brasileiro viu algumas boas formações emergirem dos anos 90, caracterizadas pela fusão de formas tradicionais com rock. O Skank trouxe os ritmos mineiros, como o Calango, os Raimundos o xaxado nordestino e ainda o Mangue Beat, a cultura dos maracatus, com Chico Science e a Nação Zumbi e o Mundo Livre S.A. Nos anos 00 houve uma regressão no rock que chegou ao mainstream. As preferências da juventude se dividiram entre a música rasteira de sertanejos e grupos de samba placebo e, no rock, de bandas sem substância, como o Restart.
A Jovem Guarda introduziu a linguagem do rock no Brasil, um movimento nascido na zona Norte do Rio de Janeiro, a parte mais pobre, que atendeu aos anseios de jovens que não viam atrativos na bossa nova, nascida na Zona Sul do Rio, a parte mais rica. As décadas seguintes trataram de conciliar os dois movimentos. O rock achou um jeito brasileiro de ser e a chamada MPB trocou seu instrumental caracterÌsticop de piano, baixo, bateria e sopros pelo instrumental do rock que inclui o piano junto com os sintetizadores, o baixo foi plugado e entrou a guitarra.
E todos viveram felizes para sempre, quer dizer, nem tanto, mas deixa pra lá.
Jamari França
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