Ano novo, vida nova. É o que se diz toda vez que muda o calendário que conta o número de voltas que a Terra dá em torno do sol desde o nascimento de Cristo. A partir de domingo, dataremos nossas mensagens, documentos etc. com o ano de 2017, em vez de 2016.
Em outras tradições, entretanto, nada muda. O ano novo chinês, por exemplo, só vai começar no dia 28 de janeiro de 2018. Isso porque os chineses seguem um calendário lunar, que usa o movimento da lua em torno da Terra como medição para o ano, em vez do movimento da Terra em torno do sol no calendário solar usado pelo Ocidente. E o ano não será 2017, mas 4715, já que a contagem chinesa não começa no nascimento do Cristo, como a nossa, e sim a partir do reinado do mitológico Imperador Amarelo, que viveu no terceiro milênio antes do messias bíblico.
No calendário ortodoxo judeu, a diferença é ainda maior. A nossa virada de ano no dia 31 de dezembro será apenas um dia como qualquer outro no ano de 5778 do calendário hebreu, que só vai terminar em setembro de 2017. Os judeus contam os anos a partir da data estabelecida pela tradição hebraica para a criação do mundo, e não a partir do nascimento de Cristo.
A hegemonia econômica e cultural judaico-cristã do Ocidente, entretanto, acabou prevalecendo durante a História, impondo o calendário geral do planeta ao estabelecer o dia 31 de dezembro como oficialmente o último dos anos que passam – a chamada virada do ano. Portanto, à meia-noite de sábado passamos de 2016 para 2017, e ponto final.
A virada do ano vem da nossa necessidade de picotar o tempo para dar ritmo à sequência da vida e fazer uma respiração necessária na caminhada sem volta em direção ao futuro. O tempo, essa coisa que ninguém nunca viu ou sente passar, para ser percebido deve ser medido a partir dos seus efeitos mais óbvios: o envelhecimento e a mudança.
Tradicionalmente, é uma época de esperança, renovações e promessas. As pessoas aproveitam o marco para fazerem resoluções que possam mudar a vida para melhor, como cuidar mais da saúde, parar de fumar ou beber, fazer regimes, começar exercícios, aprender uma língua etc. A maioria dos planos vão se desfazendo aos poucos ao longo do ano que envelhece, até que são renovados no ano novo seguinte, quando recomeça o ciclo das promessas. Vale sempre a tentativa.
O ano que acaba no sábado, no entanto, parece não querer terminar tão cedo, porque algumas coisas que aconteceram durante a sua passagem estiveram tão radicalmente fora do ritmo costumeiro que suas consequências provavelmente serão sentidas por muito tempo ainda.
A eleição extraordinariamente improvável de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos foi sem dúvida o descompasso mais importante no ritmo da passagem do tempo em 2016. O que começou como uma candidatura risível em sua pretensão terminou com a assustadora conquista do cargo mais importante e poderoso do mundo por alguém sem qualquer experiência política ou conhecimento de administração pública. Alguém que catalisou um sentimento sinistro de separatividade e preconceito ainda vivo em boa parte da sociedade americana, cuja força superou todos os argumentos mais sensatos contra a possibilidade de alguém tão irresponsável tornar-se um líder mundial. A ironia de tudo isso, como uma cruel peça de escárnio do destino, foi que a candidata derrotada Hillary Clinton teve quase três milhões de votos a mais que Trump, que acabou eleito por causa de um sistema eleitoral obsoleto que contabiliza mais o voto dos estados que o dos cidadãos da nação.
No Brasil, derrubou-se um governo legitimamente eleito em nome de um combate à corrupção que opostamente teve o efeito de legitimizar a corrupção, com os nomes de praticamente todos os novos líderes constando como beneficiários de listas de propinas reveladas pelos delatores da famigerada operação Lava Jato, que cada vez mais mostra que seu objetivo é político e não moralizador, ao indiciar, processar e prender apenas quem ela julga necessários para seus objetivos, deixando intocáveis os que ela usa para alcançá-los. O insólito da situação chega ao ponto do vice-presidente empossado, Michel Temer, estar impossibilitado de concorrer a qualquer cargo político por ter sido condenado por doações ilegais de campanha, e como tal portador da ficha-suja da inelegibilidade.
Além da legitimizar a corrupção e de entregar o país a um presidente ficha-suja, o novo governo anunciou medidas lamentáveis que terão consequências nefastas por décadas. São planejados o fim dos direitos trabalhistas, o congelamento de investimentos em saúde e educação, mudanças na aposentadoria que afetarão somente a classe trabalhadora, deixando de fora militares e políticos, perdão de dívidas para grandes empresas, entrega de patrimônio estatal a multinacionais e, finalmente mas não por último, aumento de salários e manutenção de privilégios para parlamentares e membros dos Três Poderes, entre outros absurdos. A pretexto de salvar o país (na verdade a própria pele), o governo empurrado ao país pelo Congresso condena o seu povo de volta à miséria da qual ele estava finalmente se livrando e ainda de quebra desmoraliza internacionalmente o Brasil, que começava enfim a ser levado a sério pelo mundo.
Os dois exemplos acima, pela intensidade da dissonância que representam no andamento geral da História, dão a entender que 2016 não acabará quando terminar no dia 31 de dezembro. As consequências dos acontecimentos deste ano podem reverberar por décadas a fio, como a radioatividade de uma bomba atômica.
No mais, 2016 foi um ano como todos os outros, com tragédias, celebrações, derrotas, vitórias, progressos, regressos, tristezas, felicidades, mortes e nascimentos por toda parte. De certa forma, uma pista de que tudo continua como sempre foi sob o sol.
Esperemos que em 2017 tudo continue como sempre foi, porque é assim que caminha a humanidade, seja lá para onde ela for.
Feliz ano novo.