A princípio, as cenas de “Unseen Housewives”, um trailer de 3:33 minutos dirigido pelo paulistano Gustavo Leme, podem lembrar um reality show conhecido do público, com imagens de donas de casa em mansões à beira-mar. Mas, em vez de conflitos superficiais, que passam longe da vida real da maioria das mulheres, a série fictícia leva o slogan “o dobro do drama, metade da idade”, refletindo a realidade de muitas crianças e adolescentes que são forçadas ao casamento nos Estados Unidos.
Produzido pela ONG Unchained at Last em parceria com a Area 23, o projeto tem na direção criativa outros dois brasileiros, o paulistano Piu Afonseca e o capixaba Bruno Guimarães. “Um dos pontos centrais da cultura americana são os programas de TV e principalmente os reality shows”, diz Guimarães. “A ideia vem da necessidade de fazer com que os americanos vejam todas as injustiças que estão acontecendo aqui. As pessoas pensam que este é um problema estrangeiro, mas não é. Está aqui e está conectado a essa cultura”, afirma.
“Unseen Housewives” foi filmado em Tampa, na Flórida, e conta com a atuação de duas jovens atrizes brasileiras, Michelle Machado e Mariana Gandin, ambas de 16 anos. Na pele de Fatemah Salem, forçada a casar com o próprio primo aos 15 anos, Michelle falou ao AcheiUSA sobre a experiência de participar do projeto. “Conheci a Fatemah no dia da gravação e me emocionei com sua história. Me imaginei no lugar dela, controlada pelas escolhas dos outros, presa. Essas meninas não mereciam passar por tudo isso”, lamentou.
O projeto foi lançado em março no Status of Women da ONU e faz parte de uma campanha que visa acabar com o casamento infantil nos Estados Unidos. A ideia é arrecadar fundos e viajar o país educando a população e pressionando legisladores.
Casamento Infantil em Números
Em 2017, o casamento antes dos 18 anos era legal em todos os 50 estados americanos. Em 2018, Delaware e New Jersey se tornaram os primeiros estados a acabar com o que a ONU classifica como “abuso de direitos humanos”. No mesmo ano, a Samoa Americana e as Ilhas Virgens Americanas também aboliram; em 2020, foi a vez de Minnesota e Pennsylvania; no ano seguinte, Rhode Island e New York mudaram sua legislação; depois veio Massachusetts, em 2022.
Atualmente, todos os outros 43 estados permitem a prática nos EUA – às vezes, com a permissão de apenas um dos pais, de um juiz ou de ambos. “Quando alguém é forçado a se casar, os perpetradores são quase sempre os pais”, disse Fraidy Reiss, fundadora da Unchained at Last.
Segundo um levantamento da ONG, quase 300 mil crianças de até 10 anos se casaram nos EUA entre 2000 e 2018 – a maioria meninas casadas com homens adultos. Alguns casamentos são motivados por práticas religiosas tradicionais, enquanto outros resultam da gravidez na adolescência. Ás vezes, os pais negociam casamentos para obter vistos americanos.
Outro estudo mostra que abandono do ensino médio, abuso doméstico e pobreza ao longo da vida são significantemente maiores para meninas que se casam antes dos 18 anos. Além disso, uma vez casadas, por lei elas não podem contratar um advogado e pedir divórcio antes da maior idade.
Enquanto a ONU e aliados tentam acabar com o casamento infantil, opositores expressaram preocupação com a proibição total de casamentos para menores de 18 anos. Segundo eles, a legislação visa reconhecer legalmente famílias compostas por pais adolescentes e ajudar menores a estabelecer sua independência legal para sair do sistema de adoção.
A Questão na América Latina
O casamento infantil é uma questão discutida em diversos países. Um estudo de 2022 da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal) mostrou que, em média, 22% das meninas da região eram casadas ou viviam em situação similar antes de completar 18 anos. Segundo a comissão, essa taxa de incidência tem se mantido relativamente constante nos últimos 25 anos. Apenas quatro países possuem taxas menores de 20%: Jamaica (8%), Peru (14%), Argentina (16%) e Costa Rica (17%).
Na região, o casamento infantil é proibido atualmente na Costa Rica, Equador, El Salvador, Guatemala, Honduras, México, Panamá, Porto Rico e República Dominicana. Já no Brasil, Bolívia, Chile, Nicarágua, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela, o casamento é permitido a partir de 16 anos com autorização dos pais, representantes legais ou de um juiz.