Quem passava pela Sample Road ou pela Federal Highway, em Pompano Beach, por volta do ano 2000, não podia deixar de reparar na quantidade de bandeiras brasileiras desfraldadas nas vitrines de diversas lojas, bares, restaurantes e padarias, sinalizando que os brasileiros estavam na área, dispostos a invadir de vez a região naquele começo de século. A comunidade fervia com um fluxo aparentemente interminável de gente chegando e se estabelecendo, vinda tanto de outros estados americanos, como Massachusetts e New Jersey, quanto de toda parte do Brasil. Novos negócios abriam diariamente e em toda cidade; eventos, shows e festas lotavam de gente, cheios de brasileiros otimistas e eufóricos com a efervescência do momento, que prometia um futuro garantido para o que nós começamos então a chamar de comunidade. Nesse cenário surgiu o AcheiUSA, que veio juntar-se a pelo menos outros seis jornais brasileiros que já havia em circulação. Além dos jornais, inúmeras revistas, websites e programas de TV sobreviviam com facilidade, amparados pela próspera comunidade, que parecia fadada a tomar conta da cidade, espalhando verde e amarelo por toda parte.
Essa invasão — que acabou se ampliando também por cidades vizinhas, como Deerfield Beach, Boca Raton, Coral Springs, Coconut Creek etc. — era bem diferente de uma outra que aconteceu quase uma década antes, em Miami, quando a paridade do dólar com o real trouxe para a cidade os famosos sacoleiros internacionais, que compravam de tudo nas lojas brasileiras de Downtown para revender depois no Brasil.
Para atender a toda essa gente, uma legião de brasileiros se estabeleceu em Miami e redondezas, e logo surgiu uma sólida comunidade a serviço dos sacoleiros. Os brasileiros pareciam ter invadido e dominado de vez a cidade. Miami se coloria de verde e amarelo, com filas intermináveis nas portas dos muitos restaurantes brasileiros do centro, como o tradicional Camila’s, que ainda hoje resiste firme na esquina da First Avenue com a Second Street. Logo o sonho da paridade acabou, o real foi reduzido ao seu valor ‘real’ e pouco a pouco a efervescência foi passando. Hoje, a comunidade brasileira em Miami não passa de uma sombra do que foi.
Mas a comunidade que surgiu depois em Pompano e adjacências era diferente. Ela não precisava de sacoleiros ou turistas brasileiros. Era autosustentável, impulsionada pela economia em franca expansão que Bill Clinton tinha deixado para George W. Bush. Era alimentada na sua base pelo dinheiro dos que trabalhavam duro na construção, na limpeza de casas e escritórios, transferindo os dólares da grande economia americana para a nossa sub-economia comunitária, onde o dinheiro circulava entre os comerciantes e empresários brasileiros com desenvoltura. Um mercado imobiliário aquecido estimulava a compra de casas e apartamentos e a comunidade realizava com facilidade o sonho da casa própria. A imigração fazia vista grossa às irregularidades, e era possível ver agentes do então INS – o USCIS da época – frequentando uniformizados locais brasileiros onde sabidamente havia trabalhadores irregulares. Parecia que nada podia dar errado.
Então surgiu o primeiro raio da tempestade.
Osama bin Laden atacou os Estados Unidos em setembro de 2001 e tudo virou de cabeça para baixo. Agora os estrangeiros já não eram tão bem-vindos no país como antes e as medidas de segurança baixadas por conta do ataque impuseram grandes restrições à circulação das pessoas, sobretudo às que estavam em situação imigratória irregular. Carteiras de motorista, que antes do ataque eram facilmente disponíveis para todos que morassem na Flórida independente da situação imigratória, passaram a ser um documento emitido apenas para quem estivesse regular no país. A lei imigratória 245i, assinada por Clinton, e que permitia uma legalização relativamente fácil através de uma proposta de trabalho de qualquer empregador, não foi renovada por Bush. O rígido controle em aeroportos passou a inibir a circulação de muita gente e a falta de carteiras de motorista para quem não estava legal no país foi um duro golpe na locomoção dos trabalhadores que não tinham documentos.
Ainda assim, graças a uma quantidade relativamente significativa de brasileiros também cidadãos americanos e residentes permanentes, e à tenacidade de quem, mesmo sem documentos, encarou as novas condições adversas, a comunidade continuou a prosperar. Aos poucos ela se adaptava à nova situação, que até então afetava apenas os que não possuíam documentos. A economia, entretanto, ainda ia bem, e uma nova febre de prosperidade apareceu com o boom imobiliário de 2003-2007. Durante esse período de quatro anos, o valor dos imóveis chegou a crescer a taxas de até 50% ao ano, e as facilidades na compra de casas e apartamentos eram quase inacreditáveis, com imóveis de meio milhão de dólares oferecidos sem entrada e pouquíssima comprovação de renda. Os ‘equities’ que apareciam do nada com a valorização fulminante do imóvel eram imediatamente usados na compra de mais imóveis, e assim por diante. Logo, o ‘investidor’ possuía três ou quatro imóveis financiados, esperando a valorização dos mesmos para retirar os seus respectivos ‘equities’ e continuar a ciranda. Muitos viraram corretores de imóveis da noite para o dia e passaram a viver dessa louca ciranda imobiliária. O dinheiro sobrava.
Foi aí que veio o segundo raio.
A famosa ‘bolha imobiliária’ americana estourou quase sem avisar e levou com ela os ‘investidores’, que acabaram acumulando enormes dívidas nas hipotecas, muitas delas milionárias. Desolados, viram o valor do seu patrimônio ilusório desabar pelas tabelas. Enforcados pela dívida, só restou aos ‘investidores’ entregarem os imóveis de volta aos bancos em ‘foreclosure’ ou em ‘short sales’, recursos na maioria das vezes acompanhados de pedidos de falência pessoal por conta de dívidas impagáveis e perda total do crédito.
Se o arrocho imigratório por si só era suportável graças a uma relativa prosperidade econômica, agora sem poder dirigir e falido o típico brasileiro da comunidade de Pompano Beach procurou de volta seu antigo ganha pão, mas encontrou as portas mais fechadas que nunca. Porque a bolha imobiliária não estourou só na comunidade, mas em toda a economia americana, que agora contava cada um dos seus dólares minguados.
A comunidade que em 2000 pintava o Sul da Flórida de verde amarelo agora encolhia-se acuada pela nova e dura realidade. A falta de uma reforma imigratória, tão debatida e aguardada desde 2003, frustrou muitos que esperavam uma legalização. A falta de trabalho e dos dólares dispersou a comunidade, que se viu obrigada a buscar sobrevivência em outras paragens. Muitos voltaram para o Brasil, num êxodo às avessas, estimulados pela boa fase econômica porque o Brasil passou nesse período, na esperança de que enfim o país sairia do seu passado de pobreza para cumprir o rico futuro prometido há décadas.
Quem ficou passava pela Sample Road ou pela Federal Highway, em Pompano Beach, em 2014, e lembrava-se do tempo em que essas ruas fervilhavam de brasileiros entusiasmados e empreendedores, dinamizados pela esperança de prosperidade nos Estados Unidos. Dos vários jornais brasileiros que circulavam, cheios de anunciantes satisfeitos, sobraram apenas dois, entre eles o AcheiUSA. Das dezenas de revistas que se espalhavam pelas lojas brasileiras, repletas de fotos com a cobertura social da vibrante comunidade, só duas sobreviveram.
Esses dois raios acima trouxeram uma espécie de tempestade perfeita, que assolou sem piedade a comunidade brasileira no Sul da Flórida nos últimos anos. Ela acabou com negócios, fechou bares e restaurantes, dispersou as festas e mandou embora muita gente.
Mas, como acontece com todas as tempestades, ela passou. E, como também depois de todas as tempestades, a bonança já se aproxima. Se não estamos de volta ao início do século, quando o verde e amarelo dominava Pompano Beach, pelo menos ganhamos mais experiência e amadurecimento. Hoje, se há menos dinheiro, os negócios pelo menos são feitos com mais prudência e responsabilidade, e o fluxo de brasileiros já começa a retornar para o nosso sentido. Muitos dos que foram para o Brasil, na esperança de que o país poderia proporcionar tudo com que eles já estavam acostumados depois de anos de trabalho duro nos Estados Unidos, hoje voltam para cá, decepcionados, e os que não podem mais voltar arrependem-se. O êxodo às avessas parou, e a economia parece estar dando sinais claros de recuperação, com o mercado imobiliário voltando para níveis normais, sem a perigosa especulação de antes. A reforma imigratória, estancada no Congresso pelos republicanos, inevitavelmente acontecerá mais cedo ou mais tarde, trazendo alento aos que esperam com infinita paciência o momento de poder ter privilégios tão simples como o de dirigir um automóvel ou poder trabalhar sem ser incomodado.
A tempestade perfeita foi uma prova de fogo para a comunidade brasileira. Se sobrevivemos a ela, estamos agora mais fortes e mais maduros para recomeçar a construção de não somente uma comunidade, mas de uma sólida colônia brasileira nos Estados Unidos, com toda a representatividade cultural e econômica que ela merece.
Mãos à obra.